Alex Medeiros (alexmedeiros1959@gmail.com )
Eu estava ainda para completar 10 anos. A casa dos meus pais em Santos Reis já estava no clima de mudança; dentro em pouco iríamos nos mudar para as Quintas. Os vizinhos da esquina tinham uns quatro ou cinco filhos, lembro que três deles – dois garotos e uma garota – na minha mesma faixa de idade eram os principais coleguinhas da Rua Berta Guilherme. Na casa deles eu tive meu segundo contato com um aparelho de TV, após moradia na Cidade Alta.
Ali, naquela casa dos amigos, no menor bairro de Natal, eu fui atraído pela primeira vez por um artista da MPB. Era Gal Costa, aquela moça de 24 anos, esguia, de botas negras, cabelo abalaiado e um jeito de cantar soltando ganidos e agudos quase metálicos. A TV estava sintonizada na Record e no programa preferido de nós todos, A Família Trapo, lançado dois anos antes com um timaço humorístico, onde brilhavam Ronald Golias, Jô Soares e outros.
Muito depois eu soube que o fato de estar cantando ali era porque a Record era a emissora da Jovem Guarda e um dos templos dos festivais de música que marcaram aqueles anos 1960. E Gal conquistou o terceiro lugar em 1968.
Evidente que um moleque de 10 anos nada sabia de música. O que me marcou naquela apresentação foi fruto da mistura que eu fiz com a letra da canção e o roteiro do primeiro sitcom brasileiro, onde um gorila havia fugido do zoológico.
A música era “Divino Maravilhoso”, composta por Caetano Veloso, com arranjos de Gilberto Gil, inscrita no 4º Festival da MPB, da Record. O irônico era que a turma da Tropicália tinha um programa com mesmo título na Tupi.
A interpretação de Gal no Família Trapo foi um impacto dimensionado em mim na confusão que fiz com a trama do programa, que já havia abordado o pânico dos personagens com o grande macaco que estava ameaçando a vizinhança.
Foi arrepiante ouvir aquilo: “Atenção ao dobrar uma esquina... Você vem quantos anos você tem... Atenção precisa ter olhos firmes”. Nos meus ouvidos musicalmente virgens, aquela cantora estava alertando para o perigo do gorila.
Pelas décadas adiante a imagem de Gal cantando no programa jamais saiu da minha lembrança. A canção Divino Maravilhoso quando entra em mim é uma viagem no tempo, remonto na mente cada instante daquele dia na televizinho.
No começo dos anos 1970, pré-adolescente nas Quintas, Gal me pegou de novo durante as escutas que meu irmão fazia no rádio valvulado do meu pai Luiz, sintonizado na Rural AM. “Eu vou fazer uma canção pra ela”, arrepiante.
O LP de 1969, o ano do meu primeiro encontro com ela, ainda tocava na emissora dos padres; e ali eu já sabia quem era a baiana tropicalista que entortou o romantismo do rei Roberto na versão de “Se Você Pensa”, de 1968.
Ás vezes, o belo dueto de Gal e Jorge Ben em “Que Pena” invadia a pequena casa na versão de chuveiro do meu mano. Ontem ele estava devastado com a morte de “Miss Gal” e implorando para que informassem que era fake news.
Nos anos de ouro de Pelé e Garrincha, duas vozes femininas dividiam as opiniões da tal juventude que queria mudar o mundo: Elis Regina e Gal Costa. Pra muitos até hoje as duas melhores cantoras, data vênia Maysa e Bethânia.
Gal tinha cristais na garganta vibrando em sua língua de veludo e nos lábios de chupeta de bebê. Limpa, clara, límpida, maviosamente sensual. Tão sensual que até nos fazia pensar que ela era um mulherão como as divas da época.
Tenho poucos LPs dela, todos com mais de 40 anos, sei de diversas músicas que consagraram sua carreira. Mas, nada é mais referência em mim do que sua voz no Família Trapo há mais de 50 anos, quando fui impregnado de Gal.
Como esquecer sua Graça? Amanhã será jamais!