A FAZENDA
Autor da crônica não identificado A rural “Willys” parou na entrada, desci para abrir a porteira.
Autor da crônica não identificado
A rural “Willys” parou na entrada, desci para abrir a porteira. Voltávamos da feira na cidade. Até a casa sede, a 150 metros, meus pais e minhas irmãs seguiam no carro, enquanto eu percorria caminhando na companhia de Golfinho e Baleia. Golfinho, um grande vira-lata, Baleia, uma pequenina cachorra, cortesia de um amigo do meu pai chamado Graciliano, que escrevia livros.
Nossa fazenda chamava-se Soledade. A criação de gado e o plantio de algodão eram as principais atividades. Naquele ano, 1951, a colheita havia sido generosa e dezenas de sacos ficavam empilhados no pátio, servindo para as nossas travessuras. Ali, eu e minhas irmãs pulávamos, rolávamos, nos divertíamos por horas, ignorando a coceira que chegaria mais tarde.
Meu pai levantava muito cedo todos os dias. Ia até o meu quarto e chamava: Antônio, Antônio, acorda. Era o sinal para acompanhá-lo ao curral, tomar leite do “peito da vaca”, uma das coisas prazerosas da vida no interior. As meninas não aderiam. Levantar-se às 5 horas não era para elas.
Após o café da manhã, saiamos apressados para o açude. Longos banhos faziam a nossa “festa”. Quando a fome chegava colhíamos goiabas, cajus, mangas nas proximidades. O tempo voava. Só percebíamos quando mamãe nos chamava: hora do almoço.
Seu Ronaldo, motorista da família, nos conduzia no começo da tarde para a escola na cidade vizinha. Retornávamos a tempo de contemplar o pôr do sol. Nessa hora, papai também chegava de suas andanças pela fazenda, montado no seu cavalo alazão. A noite se anunciava e os lampiões eram acesos: hora do jantar. Finda a refeição, íamos para o imenso alpendre ouvir as “histórias de trancoso” que mamãe contava, despertando a nossa curiosidade, até cairmos no sono embalados pelo suave balanço das redes.
Papai nos levava para os aposentos, nos seus braços fortes de homem do campo. Sofia tinha 12 anos, Maria 14 e eu 16. Nascemos todos na fazenda, sob os cuidados de dona Marta, parteira que atendia a região. Mamãe dizia que Sofia e Maria tinham a“cara” do pai e que eu, de olhos esverdeados, rosto afilado e corpo longilíneo, devia ter semelhança física com um bisavô.
Cinco anos passaram, Maria foi morar na capital, na casa do tio Lindolfo, para estudar na cidade maior. Mais um ano, Sofia seguiu o mesmo caminho. Era gosto de nossos pais terem as filhas formadas na universidade. Nos fins de semana Sofia e Maria voltavam. O tio também nos visitava com frequência e nessas ocasiões fazíamos um bom churrasco e uma saborosa buchada de carneiro, para acompanhar a “cachacinha” que papai tanto gostava.
A mim coube aprender a cuidar da propriedade. Vistoriar o rebanho, as plantações, acompanhar o dia a dia dos trabalhadores. Eu e meu pai preparávamos os cavalos nas primeiras horas e saíamos a cavalgar. Por vezes, parávamos diante do rio que atravessava nossas terras para pescar em suas águas calmas, sentados à sombra das árvores frondosas, cujos galhos pendiam sobre o leito.
Anos depois, a vida seguia seu curso. Sofia e Maria na faculdade, eu adaptado à rotina da fazenda, meus pais felizes pelo meu gosto e disposição para o trabalho.
Num certo dia Maria chegou nervosa e apreensiva. Minha mãe, sempre calma, descobriu o motivo: uma gravidez inesperada. A notícia abalou meu pai, homem de caráter forte e cheio de brios. Difícil para compreender a situação que significava desonra perante seus amigos. Todos sofremos. O apoio do tio Lindolfo e sua esposa foram decisivos para acalmar os ânimos.
Maria deu à luz ao pequeno João, nome escolhido para homenagear o avô. Inicialmente abandonou a faculdade para cuidar da criança. Dois anos mais, voltou para conclusão do seu curso de Direito, deixando o pequeno João sob os cuidados dos avós. Joãozinho crescia rapidamente. Sua presença trouxe uma mudança na vida de todos. Afeiçoado à companhia do neto, percebi que papai estava mais feliz.
Passeios a cavalo, caminhadas, o garoto não desgrudava do avô. O trabalho na fazenda, as viagens de negócios, a visita de parceiros para compra e venda de bovinos eram nossa rotina. Conhecido por um coração generoso, papai recebia grupos de ciganos, a cada seis meses. Esses nômades não eram bem vistos nas comunidades, pela fama de cometerem delitos e descuidos com a coisa alheia. Apesar disso, meu pai os abrigava, de duas a três semanas, reservando área para acamparem e até ajudando-os com mantimentos. A condição era que não “mexessem” em nada.
Maria e Sofia terminaram seus estudos e de vez se fixaram na metrópole. Anos mais tarde Maria reencontrou o pai de seu filho e dessa vez ficaram juntos, celebrando o casamento. A honra ferida de nosso pai, já aliviada pelo bem querer a Joãozinho, se aplacou de vez com a união, que também amenizou a saudade de ver o neto se afastar para morar com os pais.
Agora, aos meus trinta anos de idade, cuidava inteiramente da fazenda. A vida era agradável e sossegada. A família se reunia a curtos intervalos, com as visitas de Sofia e Maria.
Numa manhã chuvosa, voltando do campo, percebi dois cavalos apeados na frente da nossa casa. Tínhamos visitas. Na grande mesa no centro da sala, papai, mamãe e dois homens. Um de meia idade, outro de idade avançada, rosto fino e enrugado, cabelos grandes e olhos claros. Todos me olharam. Senti angústia e medo no ambiente.
A um aceno de meu pai sentei-me ao seu lado, quando me disse: este é o cigano Ramon e seu filho Ramirez. Somos velhos amigos. Numa de suas passagens por estas terras tempos atrás, sua esposa Dalila trazia um bebê na barriga prestes a vir ao mundo. Senti toda a dificuldade que enfrentavam, junto com o seu bando, e abriguei-os durante algumas semanas. Dalila convenceu-nos que aquela criança precisaria de cuidados e de um lar. As dificuldades que enfrentavam como andarilhos eram imensas. A razão parecia superar a emoção naquele momento e era forte manifestação do amor de uma mãe.
Após uma profunda pausa, papai prosseguiu: dois dias depois, a madrugada trouxe um menino, você, Antônio! Atordoado, levantei-me e saí apressado. A chuva intensa que caia misturou-se às lágrimas que escorriam pelo meu rosto. Senti meu ombro envolto pelos braços do homem que correu até mim. Virei-me, olhei para seu rosto sereno cuja expressão de amor e carinho eu conhecia tão bem desde a minha infância. Nos encaramos por um minuto, uma eternidade!
Abracei seu João com força. Aquele era o meu Pai!