A BALSA DA MEDUSA

janeiro 8, 2023

Nilo Emerenciano – Arquiteto e escritor Eu, que acho positivas todas as renovações, que recebo de braços abertos o novo, não poderia ser entusiasta do retorno de Lula à presidência da República, que me perdoem os amigos de tantos anos.

Nilo Emerenciano - Arquiteto e escritor

Eu, que acho positivas todas as renovações, que recebo de braços abertos o novo, não poderia ser entusiasta do retorno de Lula à presidência da República, que me perdoem os amigos de tantos anos. Há um certo sabor de déjà vu nisso tudo, de coisa velha ou café requentado.

Gostaria de um sopro renovador, de novas propostas, de ideias em acordo com o nosso tempo, se possível até afinadas com o futuro que chega todos os dias. Lembro dos belos e ousados slogans de maio de 1968, em Paris, pichados nos muros e paredes pelos estudantes e operários: “Decretado o estado de felicidade permanente"; "Corram camaradas, o velho mundo está atrás de vocês"; “A imaginação no poder"; "Sejam realistas, exijam o impossível".  Esse, que gosto especialmente: "A liberdade do outro estende a minha ao infinito".

Mas sei também que política não se faz como gostaríamos e sim como as circunstâncias e o momento histórico permitem. Brecht afirmou que é triste um país que precisa de heróis, de salvadores, do El-Rei dom Sebastião, que retorna, do 7º de Cavalaria que chega.

Mas, convenhamos, no horizonte que se nos apresentava, o ex-metalúrgico que é, sem dúvida, gostemos ou não, a figura mais importante da nossa história política recente, é a tábua salvadora de um mal muito maior. Portanto, como tantos outros, respirei aliviado no dia primeiro do ano quando Luís Inácio Lula da Silva subiu a rampa do Palácio do Planalto.

Foto|: Estado de Minas Gerais

Foi uma vitória. Suada, dramática, apenas resolvida aos 45 minutos do segundo tempo, mas foi uma grande vitória. Minha filha mais nova me questiona sobre tudo isso, procura compreender os valores que estão em jogo, as opções que tomamos e discernir o certo, na floresta de informações desencontradas. E na minha filha vejo refletidos os milhões de brasileiros que por um ou outro motivo votaram por manter a situação absurda, non sense, que vivemos até o final do ano que passou.

Há uma pintura famosa, a Balsa da Medusa (1818), de Théodore Géricault (1791–1824), que está no Museu do Louvre, em Paris. Retrata um grupo de náufragos a bordo de uma balsa improvisada à deriva. O céu está carregado e o mar agitado. Alguns estão mortos, outros moribundos, outros, entregues à dor, desistiram de lutar contra a sede, a fome e a desesperança. Um pequeno grupo, porém, se mantém de pé, acenando e olhando o horizonte onde uma nesga de sol se insinua e mostra, ao longe, minúsculo, um barco que se aproxima anunciando a salvação.

Não fosse pelo gênio de Géricault que ocupa lugar de destaque no Louvre, talvez esta história estivesse esquecida.

Valores artísticos à parte, o que me chama a atenção é o fato de que no grupo de náufragos sobreviventes há os que se deixaram abater, entregues, os que se esforçam para não sucumbir e os que ainda lutam, de pé, acenando esperançosos. Esses de pé, resistindo sempre, são os que mantêm a barca viva. São os heróis.

Quem cita Brecht esquece de colocar a frase completa. O dramaturgo inicia falando que é miserável o país que não tem heróis. Desse mal não padecemos. Temos milhões de heróis do cotidiano, que acordam cedo, preparam a marmita e tomam trens e ônibus rumo ao trabalho. Cuidam da família e com dificuldades colocam os filhos na escola, enfrentam filas, torcem pela seleção, são explorados e mesmo assim acreditam, e têm orgulho de serem brasileiros.

E há os que cuidam de idosos e crianças, que trabalham voluntariamente banhando, cortando os cabelos, providenciando roupas e cestas básicas para os sem teto. São pessoas que esquecemos de louvar, gente como irmã Dulce, Júlio Lancellotti, Divaldo Franco, Jerônimo Mendonça, Chico Xavier, Benedita Fernandes, padre João Maria e tantos anônimos que formam legião.

Heróis são também os que mantêm acesa a fé e o sentimento religioso, que “puxam” um terço, que vão a missa ou aos cultos, que abençoam os filhos e os ensinam a rezar.

 Me fazem lembrar Guerra Junqueiro: 

“Oh, almas que viveis puras, imaculadas
na torre de luar da graça e da ilusão
Vós que ainda conservais intactas, perfumadas
As rosas para nós há tanto desfolhadas 
na aridez sepulcral do nosso coração...” 

E uma estrofe que havia pendurada na parede da sala da casa da minha avó: 
“Eu vi minha mãe rezando
aos pés da Virgem Maria
era uma Santa escutando
o que a outra Santa dizia.”

 Não sei vocês; falo por mim: é muito lindo!

Esses heróis e heroínas anônimos aquecem o meu coração, às vezes vacilante. Criaturas que através do exemplo, vindos de debaixo do barro do chão, contagiam e são, sem saberem, multiplicadores pelo exemplo.

Em 1971 vi, na TV Tupi, em um programa chamado Pinga-Fogo, uma entrevista de mais de três horas de duração com um homem de fala mansa, jeito humilde, mas firme, chamado Francisco Cândido Xavier. Aquela entrevista, acreditem, catalisou o pouco que havia de bom em mim e até hoje me impulsiona e encoraja.

E já que estou com espírito brechtiano, nada como os versos do poema Os que lutam, para encerrar:

Há aqueles que lutam um dia; por isso são bons;
Há aqueles que lutam muitos dias; e por isso são muito bons;
Há aqueles que lutam anos; e são melhores ainda;
Porém há aqueles que lutam toda a vida; esses são os imprescindíveis.

Os comentários estão desativados.