NA LOCA DO POÇO DE SANT’ANA

novembro 10, 2024

Gilberto Costa Hoje, logo cedinho, proseio com a Serpente do Poço de Sant’Ana.

Foto: Facebook

Gilberto Costa

Hoje, logo cedinho, proseio com a Serpente do Poço de Sant’Ana. Faz tempo que não ocorre um papo entre nós. A última vez em que estivemos a conversar, eu contava com oito anos de idade. Lembro-me que fui pedir-lhe para que intercedesse junto a Seu João e Dona Terezinha para permitir que eu estudasse.

Já não aguentava escutar histórias que diziam haver somente nos livros. Histórias contadas por crianças do meu entorno quando voltavam da escola. E eram sobre animais gigantes os relatos que mais me impressionavam. Havia narrações sobre serpentes. Mas, ninguém falava da existência da Serpente do Poço de Sant’Ana. Nessa conversa, indago do porquê dessa omissão. Ela me garante que em breve eu saberia a causa.

Bem, há tempo não dialogamos. Claro que a serpente se encontra sentida da ausência sem explicações de minha parte. É que quando crianças, estamos mais próximos da vida e seus encantos. Temos mais olhos para as cores. Temos mais ouvidos para as cantigas. Sentimos mais o cheiro das flores. Quando crianças, pisamos o chão com os pés descalços. Apalpamos com mais frequência a aluvião dos barreiros. Há mais abstrações. Conversamos com sereias e serpentes.

Como esperado, logo vem o perdão. Nosso papo flui como ocorrera em outrora. Atualizamo-nos sobre o mundo de minhas andanças e o mundo que deixara para trás. A serpente faz elogios a minha maturidade e manifesta preocupação com a devastação que ocorre seguidamente no entorno do Poço de Sant’Ana. Reclama do mal cheiro das águas. Lamenta a ausência de seus vizinhos no santuário de encanto pretérito.

Foto: Wikimedia Commons

Fala da saudade das traíras, curimatãs, piaus, cascudos, cágados, piabas manteiga, camarões. Manifesta tristeza por seus olhos não contemplarem mais frondosas oiticicas, marizeiros, mofumbais, taquarais, por não ver nem ouvir sabiás, bem-te-vis, rolinhas caboclas. Enfim, a serpente chora. 

Fico a contemplar o soluço da serpente por um tempo que não sei quanto dura. Um tempo que me faz refletir e me transportar a outro tempo. Um tempo que o sertanejo seridoense não se permite que se deprecie, que se acabe. Um tempo que une o passado ao presente. Um tempo que resiste a qualquer tempo que não seja o tempo da inocência.

Foto: Anselmo Santana

Desperto-me de minha abstração. Tempo suficiente para enxergar o retorno da serpente aos seus aposentos na loca no Poço de Sant’Ana. Ela se volta para mim e sorri como há muito não o fazia. 

É minha vez de liberar as lágrimas até então contidas. Jorro emoções com as lembranças de meu tempo de criança.

*Texto de Giberto Costa, produzidos em 30/07/2016

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