Pe. Matias Soares - Pároco da paróquia de Santo Afonso Maria de Ligório
A Igreja Particular de Natal precisa de um projeto missionário, assumindo o que o Papa Francisco apresentou ao Celam, quando esteve no Brasil para a Jornada Mundial da Juventude, em 2013, tratando sobre a Missão para o Continente: “A Missão está projetada em duas dimensões: programática e paradigmática. ‘A missão programática’, como o próprio nome indica, consiste na realização de atos de índole missionária. ‘A missão paradigmática’, por sua vez, implica colocar em chave missionária a atividade habitual das Igrejas Particulares.
Em consequência disso, evidentemente, verifica-se toda uma dinâmica de reforma das estruturas eclesiais. A ‘mudança de estruturas’ (de caducas a novas) não é fruto de um estudo de organização do sistema funcional eclesiástico, de que resultaria uma reorganização estática, mas é consequência da dinâmica da missão. O que derruba as estruturas caducas, o que leva a mudar os corações dos cristãos é justamente a missionariedade. Daqui a importância da missão paradigmática”. O que será desenvolvido na Alegria do Evangelho e, anteriormente, proposto na V Conferência de Aparecida, está sinteticamente apresentado nesse discurso memorável de Francisco que, ainda, não foi recepcionado em muitas das nossas Igrejas Locais.
Por um certo tempo, em nossa Arquidiocese, foram vividas as Santas Missões Populares. O método consistia na meditação, estudo da bíblia, a setorização geográfica das paróquias e o povo de Deus assumindo o anúncio do Evangelho. Em muitas paróquias existiram várias experiências exitosas. A partir de Natal, o Regional Nordeste II da CNBB conseguiu propagar a proposta para outras Dioceses. Foi um tempo bom. Muitos frutos foram colhidos. Ainda em nossos dias, conseguimos ouvir alguém falar sobre aquele entusiasmo vivido e testemunhado por algumas comunidades eclesiais. Encontros do povo de Deus, por zonais, eram celebrados.
A missionariedade era promovida e, com ela, tínhamos bases para os horizontes a serem projetados em todos os recantos da Arquidiocese. Existia uma narrativa comum, com um projeto que gradativamente penetrava as estruturas. Os desafios para a eficácia da ação evangelizadora, considerando que a realidade é mais importante que a ideia (cf. EG, 231-233), estava gerando inquietações. A dimensão do discípulo de Jesus Cristo, que é necessariamente missionário, tendo por base o seu batismo, era reconhecida. Em muitas situações, o formalizado em planos nas estruturas era percebido que não condizia com o que era o concreto do mundo, com suas periferias geográficas e existenciais. A nossa Igreja Local, começou mais uma vez a criar condições para que as grandes intuições do Concílio Vaticano II, as Conferências Latino-Americanas, inclusive precedendo Aparecida, fossem sendo colocadas em prática, como o fizera no auge de seu protagonismo evangelizador e sociotransformador, com o Movimento de Natal.
Nas paróquias do interior, a setorização geográfica, onde aconteceu e foi levada à dinamização, como assim o fizemos, quando fui pároco em São José de Mipibu, com o envolvimento dos ministros ordenados, religiosos(as) e demais membros do povo de Deus, foi meio de organização para a presença da Igreja nas periferias da cidade e na coordenação das ações das comunidades rurais. A setorização era lugar de protagonismo dos leigos por excelência: lideranças eram reconhecidas, a celebração da palavra nos momentos fortes acontecia, com a participação dos ministros, a CF em família, o Natal em família e, claro, sempre, pelo menos uma vez por mês a celebração da Santíssima Eucaristia, em loco.
Nesse cenário, o pároco deve ser o primeiro discípulo missionário na comunidade paroquial. É aquele que anima, encoraja, fortalece e promove o dinamismo missionário. Tem zelo pela formação e confia na comunidade para que o anúncio da Alegria do Evangelho chegue aos corações e mentes de todos, sem discriminação e acepções de pessoas. Não favorece à ideologização e o sufocamento da beleza transcendental do anúncio do Reino de Deus, tendo no coração a liberdade para apresentar o que é para a salvação de todos, tendo sempre em vista uma antropologia integral e integrante.
Na realidade urbana, a setorização geográfica tem muitas barreiras a serem superadas, a começar pelo problema da violência. Há muitos empecilhos à visitação, às celebrações nas ruas, horários muito corridos, condomínios, prédios que fortalecem o isolamento e assim por diante. Tenho sentido o quanto é desafiador essa relação mais personalizada em paróquias de contextos hiper-urbanizados, com tantas possibilidades e atrações. Há quem aposte em eventos de massas, que necessariamente tornam o processo superficial e líquido.
É a lógica da pós-modernidade que entra numa prática pastoral sem rosto e sem nome. As emoções instigadas, são as mesmas que levam ao afastamento posterior das pessoas que não viveram um encontro íntimo e profundo com o Senhor. Há muitas figuras midiáticas e narcísicas enveredando por esses métodos. O resultado é imediato; mas as consequências serão desastrosas para o futuro. Por isso, faz-se mister uma proposta consistente, permanente e com o foco no anúncio da Alegria do Evangelho.
É sempre provocativo o que ele – Papa Francisco – propõe ao afirmar que “prefere uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos. Se alguma coisa nos deve santamente inquietar e preocupar a nossa consciência é que haja tantos irmãos nossos que vivem sem a força, a luz e a consolação da amizade com Jesus Cristo, sem uma comunidade de fé que os acolha, sem um horizonte de sentido e de vida” (cf. EG, 49). Penso que precisamos rezar nessa direção e abrir-nos à ação do Espírito Santo.
Nas linhas da Alegria do Evangelho, considerando a proposta em questão, somos impulsionados a afirmar que “cada Igreja particular, porção da Igreja Católica sob a guia do seu Bispo, está, também ela, chamada à conversão missionária. Ela é o sujeito primário da evangelização, enquanto é a manifestação concreta da única Igreja num lugar da terra e, nela, ‘está verdadeiramente presente e opera a Igreja de Cristo, una, santa, católica e apostólica’.
É a Igreja encarnada num espaço concreto, dotada de todos os meios de salvação dados por Cristo, mas com um rosto local. A sua alegria de comunicar Jesus Cristo exprime-se tanto na sua preocupação por anunciá-Lo noutros lugares mais necessitados, como numa constante saída para as periferias do seu território ou para os novos âmbitos socioculturais. Procura estar sempre onde fazem mais falta a luz e a vida do Ressuscitado.
Para que este impulso missionário seja cada vez mais intenso, generoso e fecundo, exorto também cada uma das Igrejas particulares a entrar decididamente num processo de discernimento, purificação e reforma” (cf. EG, 30). Temos que assumir com seriedade esse magistério. Com densa fundamentação no que fora proposto pelo Concílio Vaticano II, Francisco traz a importância da Igreja Local para o centro do protagonismo missionário, com seus sujeitos e consequências práticas.
Com essa eclesiologia, fundamentamos que a Diocesaneidade acontecerá, antes de tudo, pela proposição e aplicação de um Projeto Missionário e Evangelizador que seja assumido por todos os agentes da Igreja Particular. É nela que o paradigma e o programa missionários devem acontecer. A teologia missionária está densamente desenvolvida pela Tradição Viva da Igreja em nossos tempos.
O Concílio Vaticano II direcionou intensamente essa construção durante e nos seus pós (cf. Ad Gentes; Evangelium Nuntiandi; V Conf. Aparecida). Na Igreja do Brasil, em muitos documentos e propostas da CNBB, a temática da Missionariedade entrou como via transversal. Acompanhando as últimas diretrizes da ação evangelizadora, podemos constatar tudo isso. O caminho tem que ser percorrido com uma séria espiritualidade missionária e uma paixão pela causa da evangelização. É de fato uma experiência. É um encontro que nos leva à conversão pessoal, para depois transformar as estruturas das quais fazemos parte.
É nessa perspectiva que penso o projeto chamado “Igreja nas Casas”. Na paróquia de Santo Afonso Maria de Ligório estamos em fase de convites, sensibilização, formação e de futura aplicação. Almejamos preparar em torno de trinta “Missionários da Palavra”. Assim como temos “Ministros Extraordinários da Comunhão Eucarística”, teremos aqueles que levarão às famílias, de modo planejado, continuado e eclesial o anúncio da Palavra de Deus.
Pensando de modo alargado, nas cento e dezenove paróquias da nossa Arquidiocese, se preparássemos uma média de cem destes evangelizadores por paróquias, anunciando e promovendo a Palavra permanentemente, quantas famílias não poderiam ser visitadas, conhecidas e acolhidas, com suas muitas formas e estilos de vida? Isso pode desencadear uma grande transformação no nosso modo de evangelizar. Sairíamos da pastoral de conservação, que tem sua identidade na sacramentalização das pessoas, para uma pastoral em chave missionária. Essa foi a via escolhida por Aparecida.
Na visitação serão reconhecidas as pessoas, suas histórias, verdades e anseios. Poderíamos ter mais clareza do que cada família vive, como e do que necessitam da parte da Igreja. Para isso, a Igreja arquidiocesana necessitaria de uma “escola de formação de discípulos missionários”. Os contextos urbanos e rurais, com a percepção dos novos sinais dos tempos, têm que ser contemplados e assumidos. Toda essa organização teria que ser colocada como prioridade e um olhar de longo prazo; já que o primeiro passo é iniciar processos (cf. EG, 222-225).
Enfim, essa é uma possibilidade que poderá fortalecer, ainda mais, a capilaridade da Igreja em células. Foi assim que o cristianismo, pouco a pouco, propagou-se pelo Império Romano. Estamos envolvidos por um novo paganismo. Um secularismo que tem confirmado uma Era pós-cristã. Com uma religião cristã, com desafios de assumir uma teologia do “Deus Crucificado”, com uma “Mística de Olhos Abertos” (cf. J. Moltmann; J. B. Metz).
Não podemos deixar de sonhar com um futuro do cristianismo, no qual o testemunho possa continuar a atrair os que ainda não tiveram a experiência com o Ressuscitado, dando a cada um rumo novo e decidido para sua existência cristã (cf. Bento XVI. DCE, 1). Todos nós, que somos esta amada Igreja Particular de Natal, correspondamos ao envio que o nosso Mestre e Senhor fez e faz no nosso hoje da história. Assim o seja!