Minha querida Alice
Jeanne Araújo – Professora e Membro na empresa da Academia Cearamirinense de Letras e Artes – ACLA Estou no fim.
Jeanne Araújo - Professora e Membro na empresa da Academia Cearamirinense de Letras e Artes – ACLA
Estou no fim. Daqui a pouco estarei descendo pelos vales das lágrimas, talvez negros, talvez vermelhos, sabe-se lá que cores iremos encontrar do outro lado depois que a moça risonha de foice na mão nos vem buscar. Estou muito cansado e não vejo a hora disso tudo terminar. Já não tinha mesmo vontade de continuar me arrastando nessa vida depois dos anos todos que contei como se fossem uma eternidade depois que você foi embora.
E não há nada aqui além dos filhos da puta dos médicos que entram e saem sem nem nos olhar na cara. Passam aqui como se estivessem passeando pela Praza Mayor, em Madri, pela praça da Cidade Velha de Praga ou pela Praça da República no centro de São Paulo, onde nos conhecemos. Conversam sobre tudo, sorriem, contam piadas, nem parecem que estão num centro de terapia intensiva onde velhos, como eu, tentam desesperadamente sair de um corpo que nem serve mais para nada. Mas eu até os entendo.
Não há como entrar nessa sala que mais parece um velório de várias pessoas ao mesmo tempo e continuar bem o dia. Há de se contar piadas, falar da balada, contar do caso que está tendo com a plantonista do hospital do coração, aquela gostosa que todo mundo vira a cabeça para olhar quando ela passa. Pois é a conversa que ouvimos aqui, Alice, apesar de estarmos sem poder falar, nem ver, meio zonzos pelos medicamentos, mas ouvimos tudo. E isso é ainda pior que a morte.
Mas esse tempo aqui, em que espero a hora de te reencontrar, porque eu preciso te ver de novo, querida, esse tempo de espera, por mais doloroso que seja esse tubo enfiado na garganta, o ar que nem fazemos questão mais de puxar, tentando apressar a visita da moça com a foice, esse momento fez com que eu relembrasse nossa história com todos os detalhes.
Aqui, o que não passa depressa é o tempo, esse menino que nos convida a entrar na roda das lembranças, lembranças boas e ruins, e, às vezes nem queremos lembrar, mas ele , o tempo, nos puxa para dentro dessa roda e as imagens pulam em frente aos nossos olhos, não importa se estão vendados ou não. E tudo é tão claro que nos faz chorar. Ninguém ouve, mas o choro existe.
Lamentamos tudo, os momentos felizes que já não existem e os momentos tristes, aqueles que tentamos deixar para trás, mas que num momento como esse, em que estamos com os pés na cova, vem com mais força. Então, o dia em que te bati a primeira vez e todos os outros, pulam aqui na minha mente com um filme o tempo todo rebobinado e passa, passa, passa… Quero morrer porque já não aguento vê-los. Não aguento ouvir os seus gritos, o seu choro. Como fui covarde...que me adianta hoje o remorso? Nada vai trazer você de volta. E eu te amei, sim, te amei muito. Só depois que você me deixou eu compreendi tudo. E o pior de tudo foi conviver com isso pro resto da minha vida.
A mágoa de te perder para outro homem, a raiva de saber que você dormia com ele, que outro homem te tocava, te levava para dançar, para passear, tudo isso, eu vejo constantemente aqui, Alice. Não posso mais te pedir perdão querida. Mesmo que você viesse aqui, mesmo que pudesse entrar, a minha voz não passaria de um som rouco, eu não poderia lhe falar.
Percebo agora, minha vida, o quão idiota eu fui. Poderia ter vivido tantas coisas boas, poderia ter te levado para conhecer o Castelo de São Jorge, era seu sonho, eu me lembro. Mas o ciúme me corroeu por dentro como corrói esse maldito vírus, entupindo meus pulmões, queimando meu peito. Só queria que ele me queimasse todo de uma vez, de uma forma que não restasse nem as lembranças.
Eu estou no fim, sei disso. Só não sei mais quanto tempo a moça Caetana vai esperar para me levar ao teu encontro. Por mim, já teria ido, minha Alice, espero ansiosamente para fazer a travessia. Descerei aos infernos e encontrarei Caronte. Não levo moedas. Levo uma grande culpa de ter te tirado a vida e, com a minha, espero pagar a travessia para que você encontre a paz onde estiver. Eu sigo queimando aqui, por enquanto.
Fotografia: Jeanloup Sieff - Paris, 1956