Minha Tia
Nilo Emerenciano – Arquiteto e escritor Minha tia Doralice entrou de forma efetiva na minha vida muito cedo.
Nilo Emerenciano - Arquiteto e escritor
Minha tia Doralice entrou de forma efetiva na minha vida muito cedo. Eu ainda era garoto. E apenas veio sair quando eu já era rapaz e estava na universidade. Havia largado o marido depois de uma relação tumultuada e para evitar desastre maior, pois o ex-cônjuge era um sujeito de maus bofes e passou a perseguir e ameaçar o meu avô, veio buscar abrigo na casa de meus pais. Depois de alguns dias eu já sentia alguma pena do cara dos maus bofes, quem sabe ele tivesse razão, pois a tia era uma figura meio difícil de tratar. Hoje, vendo à distância, me divirto lembrando do seu linguajar e hábitos interioranos.
Depois da sua chegada passou a aparecer no varal do quintal alguns paninhos esvoaçantes, “na corda qual bandeiras agitadas”. Modess era algo ainda novo, e mamãe teve dificuldades para me explicar, cheia de arrodeio, que algumas mulheres usavam aquilo “naqueles dias”, quando as mulheres estavam “incomodadas” como se dizia então. Ah, sim, respondi, com ar inteligente, mas não tinha entendido bem aquela história.
Gostava de cantar quando estava de bom humor. Luís Gonzaga, Elino Julião, Marinês. E algumas roedeiras que era como chamávamos a música brega naquele tempo. Havia uma de sua predileção que nunca esqueci, mas que não tinha a mínima ideia de onde ela havia tirado. Eu a chamava “O sábado” por não saber título nem intérprete. Até achava que ela havia inventado. Nem nesse espírito superior chamado Google eu achava alguma pista. Até que escrevendo este texto, arrisquei e meio por acaso encontrei. Não foi à, pois ela entoava completamente desfiguradas a melodia e a letra. O título é Desgosto, de alguém chamado Vavá da Matinha de quem nunca ouvi falar. Diz assim, mas não era exatamente assim que a tia cantava:
“No sábado realiza-se o meu desgosto, alguém vai beijar teu rosto, no lugar onde beijei. Vais casar, sem ser por tua vontade, Vão fazer-te esta maldade, Qual o motivo, eu não sei, eu não sei. A esperança é a última que morre, Cansa-se cedo quem corre, eu ainda não cansei. Vou partir carregando este desgosto, Nunca mais beijo teu rosto, no lugar onde beijei.”
Certa vez uma prima solteirona, da Paraíba, passou uns dias conosco. Chamou a atenção de todos o tempo enorme que levava no banho. Numa ocasião flagrei a minha tia agachada, olhando pelo buraco da fechadura do banheiro.
- O que é isso, tia? – Eita, gota serena! Tô querendo ver o que essa sirigaita faz tanto no banho!
Minha tia falava usando um vocabulário novo pra mim. Tropeçar, por exemplo, era trupicar:” - Dei um trupicão que quase me lascava de verde e amarelo!” De uma pessoa limitada ela dizia que era “tapada feito cu de boneca”. Alguém que a desagradava era um “miserável infeliz das costas ocas.” Quando algo não ia bem ela dizia que era “de mal a pior como a cantiga da perua”.
Ri muito quando na farmácia, a tia repetiu até aos gritos, impaciente que era, que desejava Água Cabeluda, na verdade Água Rabelo. Acho que era meio surda também, pois uma vez, quando assistíamos televisão, (aquelas enormes, preto e branco, com chuviscos, bombril e tudo) me perguntou assustada: - O que esse molestado na TV tá dizendo? Tia, respondi, ele falou Volkswagen, Volkswagen. Ela deu um suspiro aliviado: - Não tá com a moringa! Pensei que era volta do pau, volta do pau!
Nem posso contar tudo pois minha tia ainda vive, mas ela dava uma de cartomante botando cartas para as jovens senhorinhas das redondezas. Papai a presenteou com um Tarô que comprou em São Paulo. Ela agradeceu, mas nunca usou. A tia era meio cega de um olho e quase inteiramente de outro. Não ia conseguir distinguir aqueles símbolos místicos das cartas do tarô. E mesmo porque as cartas eram apenas um wi-fi do mundo de lá. A tia na verdade “sentia” as coisas.
Católica roxa, ia diariamente à missa das seis da manhã. “Seu” Luís, porteiro da Igreja Bom Jesus das Dores, passava em frente de casa se dirigindo para a tarefa de abrir as várias portas da igreja e tocar os sinos da “chamada”.
Quando a tia dormia além da conta, algo invisível puxava seus pés, para acordá-la. De vez em quando ela via coisas como grandes morcegos entrando pela porta da rua. Batata: era dia de problemas ou más notícias. Dizia que olhava para a minha cama e via um enorme indígena, bem maior que eu, a dormir. Jogava no bicho segundo palpites de sonhos, e, tenho que admitir, ganhava sempre pequenas quantias. Havia um código a interpretar: sonhar com caminhão dava camelo, pois camelo é o caminhão do deserto segundo ela. Sonhar com alguém mulherengo era o aviso que o bicho seria cachorro.
Minha tia um dia inventou de contar na confissão as coisas diferentes que aconteciam com ela, os espíritos que via, os recados do além que recebia. O padre perdoou em troca de algumas Ave Marias. O problema é que as confissões se repetiam e os relatos paranormais também. Um dia o padre cansou e proibiu: - Onde já se viu? Ou a senhora acaba com isso ou não perdoo mais. Minha tia chegou em casa fumaçando: - Esse padreco de meia tigela não sabe da missa um terço e vem me proibir de ver as coisas. Como posso, infeliz? Me atrevi a perguntar: - E aí, tia, vai fazer o que? – Não me confesso mais! Ou confesso e não conto coisa nenhuma! Quero ver se ele tá com a moléstia de não me dar a comunhão!
Gostava de comer e gostava de nos ver entupigaitados, como ela dizia, de comida. Sapecava açúcar com gosto, e quem sabe minha atual diabetes se deva a seus sucos e vitaminas. Aliás, botava açúcar em tudo, na laranja, no restinho do coco ralado no fundo da quenga, até na água pra servir como garapa, bom pros nervos, afirmava.
Protegia meus primeiros namoros, até com uma certa cumplicidade, aproveitando mamãe que estava fora de casa. Tenho com ela essa dívida de gratidão, eu e minha nascente libido. Quando não gostava da moça dizia na lata: - Essa é uma cobra caninana!
Eita, minha tia. Nunca imaginei que um dia ia ter essa saudade da gota de você. O tempo nos faz olhar as coisas de forma diferente. Que bom. Acho que isso significa amadurecimento.