Nilo Emerenciano - Arquiteto e escritor
1. Ai de ti, Grande Ponto, umbilicus urbes, centro histórico, afetivo e emocional de Natal, por haveres desprezado o passado em teu presente, os teus recantos e personagens. Por não teres conservado memória dos lugares a nós tão caros, e esquecido de forma desprezível a Confeitaria Cisne, de Múcio, a Sorveteria Oásis, o Majestic, o Top-top, o Natal Clube, dos políticos e jogadores de cartas.
2. Ai de ti, pelo abandono a que relegaste os teus velhos cinemas. O Cine Rex dos seriados nas manhãs de domingo, das trocas de revistas. O Nordeste, onde vi o Dr. Jivago e que foi o primeiro a dispor de ar-condicionado. O mesmo Cine Nordeste do Cineclube e que serve hoje de abrigo improvisado para os moradores de rua sem teto e sem sonhos, e que não conheceram teus belos dias.
3. Ai de ti porque permitiste que se fosse a praça das Cocadas, lugar de papos intermináveis onde resolvíamos (ou não) todos os problemas do mundo. E porque fechastes os olhos ao roubo do busto do presidente Kennedy, inaugurado pelo seu irmão Bob, que vi passar, pela mão da minha mãe, em carro aberto pelas ruas da cidade. Eram tempos de Aliança para o Progresso, essa relação com os irmãos do norte que nos trouxe leite, manteiga, arroz, afim de mitigar a nossa fome e os ímpetos revolucionários dos mais ousados.
4. Ai de ti, Grande Ponto, porque desprezas os teus moradores e homenageados, deixando que se trate tão mal a memória do nosso santo Padre João Maria, aos poucos relegado a um canto da praça que leva seu nome. E que os arquitetos que desenharam a reforma daquele espaço sagrado sejam punidos com a ira divina pela absoluta falta de sensibilidade e bom gosto.
5. Ai de ti, Cidade Alta, por não registrares os fatos da tua história com marcos, referências, datas. Pela absoluta falta de alusão aos dias em que tivemos, não sem luta, um governo comunista. Por abandonares o Memorial Câmara Cascudo, o museu do Sobradinho, a histórica Rua da Conceição e haveres permitido a fuga dos governadores para o distante Centro Administrativo, onde se escondem da população da cidade.
6. Ai de ti por haveres ficado cega às dezenas de moradores de rua, mendigos, desempregados, usuários de algum tipo de droga, que buscam abrigo sob as marquises dos teus velhos prédios, muitos deles fechados. E por não assegurares segurança para os transeuntes, homens, mulheres, jovens meninas, todos expostos, oh, senhor, ao assédio de criaturas que de tão perdidas levam medo aos inocentes.
7. Ai de ti, e ai dos que esqueceram ou não viveram os tempos de Heli-som, da Sapataria Motinha, do Ki-show, do Ponto Frio e do Bob’s, do Dia-e-Noite, do Escondidinho, do Minhoto, do Codorna Bar, do Hotel Ducal, da Espaguetelândia, do Cachorro-Quente do Souza e do Caldo de Cana Orós. Ai de quem não lanchou no Gimmy Lanches ou no Chapinha e não tomou injeção em Cícero enfermeiro. Não passeou pela calçada da Formosa Síria, do Tic-tac, da Casa Rio, das lojas Girafa e da Duas Américas.
8. Ai de quem não comprou um remedinho para curar verruga nos ambulantes das suas calçadas. Ou não viu o homem da cobra se apresentando em plena rua. E ai dos que não experimentaram o picolé Big-Milk ou comeram os churrasquinhos de gato servidos em espetos de arame.
9. Ai de ti, Grande Ponto, por haveres se desfeito da Livraria Universitária, onde o poeta Volonté, trabalhando em seu ambiente natural, nos apresentava as novidades literárias. E que trazia inscrito no seu frontispício os versos de Castro Alves: “Oh! Bendito o que semeia /Livros à mão cheia/ E manda o povo pensar! / O livro, caindo n'alma/É germe – que faz a palma, / É chuva – que faz o mar!”
10. Ai de ti, porque enquanto o Mercado são José em Recife queimou em 1989 mas foi restaurado e funciona até hoje, autorizaste sem luta que fosse feita a demolição do nosso Mercado Público após o grande incêndio e em seu lugar fosse erguida uma casa bancária.
11. Ai de ti, Cidade Alta, porque perdeste a luta contra os centros comerciais, os chamados “shoppings”. Levaram, sem combate algum, os teus usuários, os consumidores das Lojas Brasileiras, da C&A, Padaria Aviação, Café São Luís, Livraria Templário, farmácias, bares e lanchonetes. Restaram, Deo gratias, os sebos, o beco da lama, a Casa do Cordel, o bar do Zé Reeira. Tomaram de ti até as manifestações políticas que não mais acontecem nas suas ruas. Ai de ti, portanto, pela omissão.
12. Ai dos que não ouviram André da Rabeca, tocar. Conversaram com Severina Embaixatriz, Milton Siqueira, Ziu Paiva. E perderam a oportunidade de admirar a prosa do padre Zé Luís, o curruchiado de João Machado, a poesia de Jarbas Martins, Racine Santos, Osório Almeida e mais tanta gente boa.
13. Ai de ti, porque, a menos que a cabeça dos nossos gestores, engenheiros, arquitetos, comerciantes e artistas se empenhem em um projeto de recuperação/revitalização da tua vida econômica e social, os teus dias estarão contados e o teu destino passa a ser uma distopia, cinza, triste, melancólica. A menos que gritemos que queremos de volta nossas calçadas, bares, praças, ruas e espaços públicos livres, desobstruídos, utilizados de forma plena e inteligente, com direito a comida, diversão e arte, muita arte, cantarás tua última canção, ó Grande Ponto, e será uma canção de adeus.
14. Ai dos planejadores e políticos que assistem de braços cruzados o teu fim iminente e a lenta agonia da Ribeira, já em ruínas, além da degradação do bairro do Alecrim, da praia do Meio e de resto boa parte da cidade, exceção feita à zona sul, para onde se debruçam os olhares ávidos dessa gente horrível.
15. Ai de ti, Grande Ponto, ai de ti, Cidade Alta e ai de nós. Porque em ti morre um pedaço de cada bom natalense e da nossa rica história. Vão-se os caquinhos daqueles que amam a nossa frágil urbe, os restos da nossa polis; desaparece um fragmento importante da nossa cidade, uma parte fundamental de nossas vidas.
Bela retrospectiva,um passeio memorável e saudosista. Parabéns
Senhor Nilo Emerenciano. Que crônica bela. Que sua voz ecoe nos ouvidos daqueles que assumem a responsabilidade de cuidar da nossa cidade, da nossa história, do acervo cultural, das gentes , dos moradores do nosso chão. Seu lamento é o nosso também. É desolador vê a história, pontos, ruas, bairros se perdendo no tempo… Obrigada
Um passeio ao passado e a constatação do progresso… infelizmente 😞na nossa cidade o abandono.