LAMPIÃO: VERDADES E FANTASIA

outubro 30, 2022

Nilo Emerenciano – Arquiteto e escritor A existência de Virgulino Ferreira da Silva, o capitão Lampião foi, para mim, desde os 14 anos, alvo de interesse especial, acho que a partir do filme o Cangaceiro (1953), de Lima Barreto.

Virgulino Ferreira da Silva, o Capitão Lampião - Foto: Aventuras na História

Nilo Emerenciano - Arquiteto e escritor

A existência de Virgulino Ferreira da Silva, o capitão Lampião foi, para mim, desde os 14 anos, alvo de interesse especial, acho que a partir do filme o Cangaceiro (1953), de Lima Barreto. A abertura do filme, com os cangaceiros montados em marcha macia ao som de Mulher Rendeira; o jeitão duro do ator, Milton Nascimento; Vanja Orico cantando "Sodade, meu bem, sodade", de Zé do Norte; os apetrechos, chapéu, bornais, cartucheiras, rifles e longo punhal atravessado na cintura; enfim, uma estética diferente da que eu estava habituado a partir dos filmes americanos de farwest.

Tudo aquilo bateu fundo na imaginação do menino. A esse filme se seguiram A Morte comanda o Cangaço (1960) e outro, Lampião, Rei do Cangaço (1964), em que os diretores exageraram e colocaram Leonardo Vilar, imaginem, no papel de Lampião. Ótimo ator, vinha do sucesso de Pagador de Promessas, mas um branco de cabelos lisos não convencia em cena. Em Corisco, o diabo louro (1969), Milton Ribeiro fez mais uma vez o papel de Lampião e Dadá, mulher de Corisco, coube, vejam só, à carioquíssima Leila Diniz.

Maria Déa, que viria a ser Maria Bonita - Foto: Blog Carlos Britto
Em algum momento caiu nas minhas mãos um livro de bolso, contando as aventuras do Rei do Sertão. Seu encontro com Maria Déa, mulher casada que viria a ser Maria Bonita, os combates, a morte na grota do Angicos. Além disso o livrinho era recheado de fotos do Benjamim Abrahão o que dava um cunho de autenticidade aos relatos. Além das letras das músicas que os bandoleiros cantavam quando arranchados. 
O quintal da minha casa
não se varre com vassoura
varre com ponta de faca
e bala de metralhadora. 

Contava também alguns casos que depois vim perceber que eram improváveis, como o Capitão forçar um cabra a comer porções enormes de sal por ter reclamado da comida de uma sitiante que os abrigara.

O livro repetia a versão do sertanejo injustiçado, entrando para o cangaço movido unicamente pelo desejo de vingança. E também um pouco Robin Hood, a tirar dos ricos para dar aos desfavorecidos. Aos poucos, a partir dessas narrativas, Lampião foi se tornando um ícone da esquerda que apresentava o cangaceiro como representando o desfecho da luta de classes: o conflito armado.

Lampião e Maria Bonita
Maria Bonita

Ruy Facó, em Cangaceiros e Fanáticos (1963) é bem um representante dessa corrente de pensamento. Mas não só ele. Os bandidos tornaram-se, nos anos 60, uma espécie de heróis. Hélio Oiticica, artista plástico, criou o slogan “Seja marginal, seja herói”. Mineirinho, Tião Medonho e Lúcio Flávio, foram representados no cinema como uma forma de resistência ao poder constituído. Uma questão nos era colocada: quem era o herói? De que lado estamos? A confusão estava feita a ponto de o bandido Lúcio Flávio (Lúcio Flávio, o passageiro da agonia, 1977) precisar explicar o óbvio: “- Ladrão é ladrão e bandido é bandido.”

Chico Buarque, sob o pseudônimo de Julinho de Adelaide, gravou uma canção (Acorda amor, 1974) que colocava sirenes de polícia ao fundo e o cidadão, atarantado, a gritar: “Chama o ladrão, chama o ladrão!”

Bando de Lampião - Foto: Nova história crítica

Em Natal o artista plástico Vicente Vitoriano ganhou um concurso de pintura da Fundação José Augusto com um trabalho chamado "O Herói", que retratava o bandido Brinquedo do Cão, célebre em nossa crônica policial. Eu próprio fiz um roteiro de uma HQ em que um padre enfrentava três cangaceiros que invadiam uma cidadezinha do interior. Lembro que abria a história apresentando os bandidos como vítimas da seca, do coronelismo, dos latifúndios e das injustiças sociais.

Literatura de cordel sobre Lampião

A literatura sobre o cangaço é vasta e muitas vezes fantasiosa. Li um autor apresentando Lampião ajoelhado na caatinga a rezar usando um terço feito de orelhas humanas, mostrando que as fakes não são coisas novas. E houve até um antropólogo insinuando homossexualidade no capitão. Juro que pagaria qualquer coisa para vê-lo dizer esse absurdo na cara do rei do cangaço. Já imagino Virgulino sacando da lambedeira e perguntando: - O quêêê, cabra da peste?

Enfim, um pesquisador levou a sério e a cabo a pesquisa. Saiu do gabinete de trabalho, percorreu o campo, visitou lugares, entrevistou sobreviventes e testemunhas, consultou livros, cartórios e jornais, livrou-se de ideologias e escreveu um livro em que busca retratar o que Lampião realmente foi, seu tempo, seus atos, suas motivações e a morte violenta sem chance de defesa. O pesquisador é Frederico Pernambucano de Mello e o livro é Guerreiros do Sol – Violência e banditismo no Brasil (A Girafa Editora – 2004). O autor lançou também Apagando o Lampião (2018), onde descreve com minúcias os últimos dias do cangaceiro e de seu grupo, a perseguição, a traição do coiteiro, o cerco, o tiroteio e a morte.

Nos livros, Frederico Pernambucano desfaz com autoridade o mito do homem que busca vingança e luta por justiça. Em seu lugar, surge um Lampião que tem no cangaço um meio de vida e que, inclusive, sendo extremamente bem sucedido no seu ofício, acumulou grandes somas em ouro, joias e dinheiro. Revela que em toda a carreira criminosa Lampião jamais tentou sequer se aproximar do homem “responsável” pela sua desdita apesar das oportunidades que surgiram.

Outro mito desfeito é o de Robin Hood, ou do bandoleiro insurgente contra os coronéis. Na verdade, Lampião agia sob a proteção e o conluio dos fazendeiros e algumas autoridades. Só assim ele obtinha víveres e armamento moderno, de uso militar. Ao ser apanhado na grota do Angicos, em sua tenda havia itens finos como perfume francês, uísque e petiscos e uma sacola contendo 600 munições de fuzil novas em folha. É bom registrar também que ao ser apanhado, Lampião buscava uma espécie de aposentadoria, evitando combates e planejando uma fuga para Minas Gerais, a exemplo de outros, antes dele.

A polícia massacrou os cangaceiros, finalizando na morte de Maria Bonita e  mais nove cangaceiros. Ao total morreram onze cangaceiros em Angicos, nove homens e duas mulheres, sendo todos decapitados. Suas cabeças foram expostas na cidade de Piranhas, como demonstraram de força do Estado, tentando assustar aqueles que se rebelassem contra o coronelismo. Foto: Reprodução/Wikimedia Commons

Então se nem Robin Hood nem justiceiro, muito menos revolucionário, então o que Lampião realmente foi?

Fácil: um bandoleiro bem sucedido dono de inegável coragem pessoal que construiu e administrou uma rede de apoios e uma estrutura de pequenos grupos espalhados, mas sob a sua chefia absoluta, em uma espécie de franquia. Sem falar do seu gênio militar, sabendo explorar como ninguém a topografia e o clima da terra em que se movia em autêntica tática de guerrilha. Durante quase 20 anos manteve-se a salvo da polícia, vencendo vários embates contra os chamados "macacos". Foi enfim derrotado devido às mudanças ocorridas no sertão do Nordeste que aos poucos se modernizava. Novas leis, estradas, telégrafo, caminhões, armamento moderno, colaboração entre as polícias dos estados. Esses elementos reunidos conseguiram, afinal, dar fim à carreira vitoriosa (no mau sentido) daquele que foi, sim, o grande e indiscutível Rei do Cangaço.

O que Lampião realmente foi? Foto: Portal Espiaqui

Uma resposta para “LAMPIÃO: VERDADES E FANTASIA”

  1. Angela disse:

    Pelo relato, ele pode ter sido uma espécie de “testa de ferro ou bucha de canhão” para alguns poderosos da região…e como sempre acontece, depois de algum tempo, circunstâncias, mudanças de objetivos etc, foi descartado.