Roteiro não oficial e o encontro com alguns artistas mipibuenses
Gutenberg Costa – Escritor, pesquisador e folclorista.
Gutenberg Costa – Escritor, pesquisador e folclorista.
Quem me conhece sabe que não gosto dos ditos roteiros oficiais. Esses, geralmente, esquecem o lado cultural popular, acredito até que propositalmente excluem os lugares simples, como as feiras e os mercados. Acham que todo turista é besta e não gosta de cultura popular. Ver o povo com nossa cara e sua história de vida é o que gosto. Nada arrumado antes para inglês ver como bonito e maquiado. Hoje vou relatar resumidamente um passeio que fiz ao lado de amigos. O escritor e arquiteto Nilo Emerenciano, como assim resume o seu enorme currículo, o qual ainda abrange: contista, cronista, pesquisador e escritor. A contista, escritora e jornalista Rosália Figueiredo e o jornalista e meu editor Dedé do Alerta, como gosta de ser chamado. Foi com esse ‘trio ternura’ que formei o ‘Quarteto em Cy’ e fomos as terras do Barão de Mipibu.
Histórias para mil e umas noites. Dessa vez, peço licença ao meu bom barquinho para contar as visitas aos três artistas de São José de Mipibu. Chão dos ancestrais do meu saudoso amigo, artista plástico e irrequieto humorista Arruda Sales. Já dizia o genial escritor carioca Antonio Callado: “... me controlo para não espichar a história”. Quando converso, aviso logo aos sofridos ouvintes que bebi água de chocalho quando criança em Pendências/RN. Ao escrever, peço a minha revisora, Elaynne Camilla, que corte a metade da história, se não ninguém aguenta chegar ao fim. Mas, juro que hoje, vou ser curto, como rabo de porco.
O primeiro artista que visitamos foi o senhor Alberto Job, popularmente chamado de ‘Beto’, com 59 anos de idade (inclusive, seu aniversário é hoje!). Filho da artesã do barro que ficou conhecidíssima como dona Marta Job. Conheci sua mãe no início dos anos 90, levado pelo saudoso mestre Deífilo Gurgel e acompanhado do amigo folclorista Severino Vicente. Na ocasião, ainda trabalhava em suas peças, criações inspiradas na cultura popular. Tempo no qual não havia a famigerada interferência artística chamada de ‘visual de marketing comercial’. A peça vinha da cabeça da artista com criatividade, sendo parte de sua vida e de seu mundo. Ainda adquiri algumas peças da mestra, como quartinhas, jarras e máscaras. Aos trancos e barrancos, o mestre Beto Job resiste a venda comercial e podemos ver em sua oficina/atelier de vendas casais de cangaceiros, santos e bois.
Seu ponto fica bem próximo a feira e a igreja católica. Quase não recebe turistas vindos dos ditos pacotes. Sobrevive de sua arte, gosta de conversar e fazer novas amizades. Ficou emocionado quando lhe falei de sua mãe e seu respeito pelo mestre folclorista Deífilo, quando esse apresentou a dois novos folcloristas. É uma pena que não disponha de um catálogo bem feito e colorido retratando um pouco da história e das obras em barro de ambos.
As histórias das cidades são, inegavelmente, as histórias de seus aguerridos e sofridos artistas. Muitos mais conhecidos fora dos que os que detém o poder transitório local. Aprendi com os meus mestres, (Veríssimo de Melo e Deífilo Gurgel) a visitá-los antes de qualquer outra autoridade municipal: “Vá logo nas casas dos artistas, dos mestres, das mestras e brincantes do folclore!”. Assim, segundo eles, era a regra dada através dos sábios ensinamentos do velho mestre folclorista Câmara Cascudo.
Ainda na conversa/visita ao referido Alberto Job, fomos apresentados ao artesão conhecido como seu Manuel. Todos os dias está ali trabalhando nas suas belíssimas peças em madeira. Esse faz de tudo que a imaginação e suas ferramentas permitem tomar forma para nossos olhos. Nenhum abalizado e estudado crítico arranja palavras para definir a arte e esses artistas autodidatas, inspirados talvez por seres divinos. Geralmente, morrem pobres e esquecidos. Pouquíssimos assinam suas criações, como Alberto Job e seu Manuel. Ou como gosta de ser chamado: ‘Manel’. Eles nem sonham que os espertalhões compram suas artes a preço de banana e, depois de uma pintura ou retoque, são revendidos a peso de ouro em lojas chiques de shoppings modernos das grandes cidades. Sempre reconheço a diferença dos compradores honestos dos ditos atravessadores da arte popular. Os últimos são agiotas, tipos inescrupulosos que ganham e vivem muito ricos com o repasse da bela arte dos pobres e sofridos artesãos nordestinos.
A terceira visita foi a casa do artista plástico autodidata Estelo. Famoso pelo nome, apontado pelo casal de amigos jornalistas e escritores Vicente Serejo e Rejane Cardoso. Essa, enquanto presidente da Fundação Capitania das Artes de Natal, proporcionara uma exposição ao citado artista. Sua fama ultrapassou as fronteiras do RN, mas, como quase todo artista primitivo e sem condições financeiras, continuou pobre e esquecido em um conjunto habitacional de São José de Mipibu, região agreste potiguar. Casado, com filhos e netos. 68 anos de idade, aparentando até menos, apesar das doenças que lhe atormentam há anos, principalmente a coluna. Aposentado, com um salário mínimo, que mal dá para sua medicação diária e constante.
Mostrou-nos dezenas de quadros espalhados em suas paredes, retratando igrejas, casarões, engenhos e fazendas da região Agreste. Muitos foram cenários de suas lembranças de infância e adolescência. Foi o que se pode denominar um menino que viveu como pobre e brincando feliz nas cercanias dos engenhos e fazendas. Não como filho de proprietário, mas como criança de trabalhadores dessas. Na saída, em sua calçada, me confidenciou o seu grande sonho de velhice: “Eu só queria mesmo era ter condições de, antes de morrer, comprar um sitiozinho para poder plantar uma roça. Colher minhas verduras e as fruteiras todos os dias. Nada mais!”.
E o referidos quadros do Estelo estão, segundo o próprio, nas paredes há anos sem que apareçam compradores. Que situação, meu Deus! Devido a precariedade da sua saúde, quase não vem pintando seus casarões vistos na infância. Embora, de um modo ou outro, o artista ainda sonha e quer se isolar do agito dos dias atuais para viver em paz e quem sabe produzir mais em sombras frutíferas de um pequeno sítio…
O mesmo confidenciou-me ainda que é meu leitor e admirador antigo e sua mãe também se chamava ‘Maria Estela’, como a minha. Apontou o retrato em preto e branco emoldurado em sua parede com orgulho nos olhos marejados de lágrimas: “Ali, meu amigo Gutenberg, está a maior riqueza que eu tinha na minha vida, a minha mãe, dona Maria Estela!”. E em nossa despedida, a qual espero que seja breve, prometi sempre voltar para tomar a sua água e café, como também para conversar mais e saber de outras histórias de sua vida. Seu passado alegre, rico e sofrido ao mesmo tempo. Histórias que tão bem encheriam um grandioso livro de memórias.
Seria bom que as prefeituras agraciassem os seus artistas populares com pensões vitalícias. E como eles me dizem em suas simplicidades: “O pouco com Deus é muito!”. Não são muitos e representam a história cultural e artística das cidades. Nada que possa falir as administrações. E para terminar hoje, confesso aos leitores desse domingo, que saí da casa do grande artista Estelo, um tanto abalado emocionalmente, sabendo que tivemos duas riquezas no passado e hoje somos dois homens de cabelos grisalhos sem as amadas ‘Marias Estelas’ a embalar nosso sono, com seus relaxantes cafunés e suas sonoras e divinas cantigas de ninar...
Morada São Saruê, Nísia Floresta/RN.
Gostei de tudo
Muito legal!
Que bom que vocês são sensíveis, reconhecedores e incentivadores de legitima arte. É mt importante para a cultura local. E certamente, deveria ter mais incentivo e fazer parte da rota turística.