COSME E DAMIÃO

outubro 3, 2021

Nilo Emerenciano – Arquiteto e escritor Atenção, caro leitor(a)! Para ler chupando balinhas Só vamos compreender o fenômeno religioso quando entendermos o que é sincretismo, a influência que umas religiões exercem sobre outras na prática e crenças.

Nilo Emerenciano - Arquiteto e escritor

Atenção, caro leitor(a)! Para ler chupando balinhas

Só vamos compreender o fenômeno religioso quando entendermos o que é sincretismo, a influência que umas religiões exercem sobre outras na prática e crenças. A Umbanda, por exemplo, única religião realmente brasileira, é um mix de catolicismo, candomblé e espiritismo. No congá da Umbanda cabem, democraticamente, Jesus Cristo e Maria de Nazaré, os Orixás do Candomblé, ciganos, santos católicos como São Jorge e São Sebastião, imagens de Pretos Velhos, Caboclos, Marujos, mestres Juremeiros, Malandros, Pombas Gira e até o padre Cícero Romão Batista e a escrava Anastácia têm o seu lugar assegurado. Tudo muito junto e misturado.

Já vi o terço inteiro com todas as 50 Aves Marias e seus mistérios e glórias ser rezado no mesmo terreiro em que havia o Evangelho Segundo o Espiritismo de Allan Kardec sobre o peji. E quanto à assimilação dos santos do panteão católico no terreiro? Como entender que Santo Antônio de Pádua, franciscano português, intelectual, grande pregador, tenha se tornado Ogum? São Sebastião, centurião romano, mártir cristão que morreu executado a flechadas, surja nas giras como Oxóssi guerreiro, protetor das matas?

O que pensar de Santa Bárbara da Nicomédia, degolada pelo próprio pai, que tornou-se a Orixá negra Iansã, a esplendorosa rainha dos raios e das tempestades? Isso tudo só é possível no espaço sagrado dos terreiros e dentro da facilidade que as pessoas do povo têm de compreender com o coração e de não criar obstáculos para o que vem de debaixo do barro do chão e do fundo do sentimento.

Além disso, as religiões têm sempre duas vertentes; a intelectual, representada pelos pensadores e teólogos, que elaboram os dogmas e tentam dar um ar racional às coisas da fé; e a popular, perene, incontida, espontânea e herdeira de tradições diversas. Passada de boca em boca, de pai pra filho, de geração pra geração, de mestres para iniciantes. Essa fé popular faz Santo Antônio ser pendurado de cabeça pra baixo para as moça arranjarem casamento.

Faz também as pessoas fazerem fila para esfregar notas de dois mil réis no corpo do Senhor morto. Ou dona Penha, minha mãe, guardar a vela da minha primeira comunhão para os dias de escuro de que fala o Apocalipse. Dona Penha rezava a Salve Rainha até “mostrai-nos” para só concluir depois de achar o objeto perdido. E às vezes recorria a São Longuinho (Longino, soldado que espetou a lança em Jesus, segundo a tradição): “São Longuinho, São Longuinho, se eu achar dou três pulinhos”, sem nos explicar o que são Longuinho faria com os seus três pulos.

Comemoramos, na última segunda-feira 27, a festa dos santos Cosme e Damião. E até nisso a história desses santos gêmeos é rica e representa bem as artes do sincretismo, porque o dia 26 é a data oficial, do cânone católico, mas no dia seguinte os terreiros de Umbanda de todo país realizaram festas para as crianças, com balas, pipocas, doces e refrigerantes para saudar as crianças ou cosminhos, como preferem alguns. Quando criança moramos próximos a uma fábrica de confeitos e no dia dos santos os fogos espocavam e balas eram distribuídas pra garotada.

Na Umbanda surge um terceiro irmão, Doum, menor que os outros dois, representado em algumas imagens. Nos terreiros cantam: “Cosme e Damião/Damião cadê Doum?/ Doum foi passear no cavalo de Ogum”. E os espíritos de crianças surgem, divertidos, alegres, se lambuzando com os doces e pipocas, brincando com todos e pedindo a benção aos tios e tias. Zezinho, Mariinha, Crispim, Doum. Eles nos contam em tom de fofoca que Doum tá nuzelo, pois foi assim que morreu. – “Doum não tem roupas, tio”. E haja risadas. E continua a cantoria: “Papai mandou um balão / com todas as crianças que tem lá no céu / tem doce mamãe/ tem doce mamãe/ tem doce lá no Jardim”.

A essas alturas você deve estar se perguntando o que tudo isso tem a ver com Cosme e Damião, pois eles eram adultos, médicos, nascidos na Ásia Menor, e nem esse nome tinham, eram, na verdade, Acta e Passio. Como eles vieram se tornar, no Brasil, os gêmeos orixás ibejis, filhos gêmeos de Iansã e Xangô? Há até os que, com ares eruditos, remetem a tradição aos antigos mitos gregos, afirmando serem os nossos queridos cosminhos versão “moderna” dos filhos gêmeos de Zeus, Castor e Pólux. Dá pra ver que a história vai longe.

São Cosme e Damião realizando uma cura milagrosa através do transplante de uma perna. Pintura a óleo atribuída ao Mestre de Los Balbases, cerca de 1495.

A nós interessa a riqueza da tradição, o saber e a prática popular, ameaçados hoje em dia pela intolerância religiosa que em tudo vê a presença do diabo, até nos inocentes doces distribuídos com muito amor pelos devotos. Saberes que misturam sem o menor preconceito, santos, ibejis e figuras mitológicas em nome da alegria e devoção. Alegria, aliás, que é a característica principal dos Erês, crianças queridas. Cantemos, portanto, sem discriminação alguma, saudando as crianças todas do grande jardim:

São Cosme e São Damião
Sua santa já chegou
Veio do fundo do mar
Que Santa Bárbara mandou
Dois, dois, Sereia do mar
Dois, dois, Sereia do mar.

NATAL/RN

Uma resposta para “COSME E DAMIÃO”

  1. JOSIAS Góis disse:

    Bravo caro Amigo.
    Mto obrigado pelo momento cultural.
    Abração.