Resiliência de toda uma vida
Alex Medeiros – Jornalista e Escritor (@alexmedeiros1959) Texto publicado na Tribuna do Norte O rádio valvulado do meu pai dizia que chovia fino no Rio de Janeiro naquela tarde de 27 de junho de 1971.

Alex Medeiros - Jornalista e Escritor (@alexmedeiros1959) Texto publicado na Tribuna do Norte
O rádio valvulado do meu pai dizia que chovia fino no Rio de Janeiro naquela tarde de 27 de junho de 1971. Ainda com as roupas carregadas do cheiro de pólvora das brincadeiras juninas, eu colei o ouvido e o coração na transmissão da final do Campeonato Carioca, na espera da conquista de um título que onze entre dez jornalistas previam para o Botafogo.
O Glorioso fizera uma campanha inquestionável e chegou na final diante de um Fluminense inferior. Mas durante o jogo, a supremacia alvinegra não se transformava em gol e o tricolor lutava tentando igualar a posse de bola. Anos antes, Nelson Rodrigues (pó de arroz doente) criara a figura do “Sobrenatural de Almeida”, uma alma penada a vagar nas arquibancadas do Maracanã.
O fantasma era responsável por tudo de ruim que ocorria no grande estádio, como o Maracanazzo em 1950 e outras decepções que lá acontecem até hoje, como vemos nas várias derrotas do Flamengo para adversários medianos.
Voltemos à tarde fatídica de 1971, quando aos 43 minutos do segundo tempo uma bola cruzou o céu da área botafoguense, o goleiro Ubirajara subiu e foi deslocado no ar como uma pipa no cerol. A bola sobrou para o gol de Lula.

Encolhido numa cadeira e debruçado no balcão da cozinha onde estava o rádio, eu experimentei aos 12 anos um dos piores impactos emocionais da puberdade. Dormi úmido de lágrimas e não saí de casa na segunda-feira.
Mal sabia aquele pivete que seis meses depois a tragédia se repetiria, em 19 de dezembro, quando o grande time de craques da Estrela Solitária sofreria nova derrota, na final do Campeonato Nacional contra o Atlético Mineiro.
As feridas de junho ainda coçavam no corpo magricela, mas a ilusão da paixão, renascida das cinzas de São João, renovava-se na fé e magia do Natal. E de novo me prostrava diante do rádio paterno. O Botafogo em modo Papai Noel.
Mas o meu Papai Noel não veio, como na canção natalina, e um novo choque de realidade aconteceu nos dois gols do artilheiro Dario para o Galo. A dor lancinante no meu orgulho, exatamente como aquela de junho no gol do Flu.
Cresci fiel ao time da Estrela Solitária, mas os dois reveses de 1971 acompanharam a alma botafoguense de pessimismo imortal, como sentenciara a crônica do velho Nelson. E na sombra do augúrio de Paulo Mendes Campos.

Nem mesmo a Era Túlio foi suficiente para sanar as feridas da meninice, em que pese a maravilha extemporânea do segundo título nacional, esperado desde 1968. O time gigante da infância foi encolhendo e se desconstruiu.
Os anos foram passando e nós torcedores acumulando sustos e frustrações, engasgados em “quase” e “foi por pouco”. E apesar do time descer da prateleira dos campeões, era preciso manter o pacto de fidelidade do passado.
Eu acho que assim como o Universo envia sinais, a vida às vezes nos pede desculpas. E mais de meio século depois, o tempo das glórias estelares me colocou diante de um outro dezembro e um outro junho, em 2024 e 2025.

O Botafogo venceu a inédita Taça Libertadores contra aquele Atlético do gol furtivo de 1971 e papou o Brasileirão com um tricampeonato exemplar. Juntos e separados no tempo-espaço eu me abracei com o eu menino que chorava.
E na quinta-feira, feriado nacional, em mais um junho frio, os dois eus lavaram a alma assistindo um Botafogo encarnado nos heróis do passado e vencendo o melhor time do mundo. Nunca deixei de acreditar que nas derrotas da vida a paixão sempre acha um jeito de vencer. E isso acontece com o Botafogo.


