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agosto 29, 2021

MEU TIO QUE BRIGOU E CONSEGUIU UM ACORDO COM A MORTE

 Gutenberg Costa – Escritor e folclorista.

 Gutenberg Costa – Escritor e folclorista.

Li há um tempo em um desses avisos/recados em paredes em um bar a seguinte frase bem realística em tom de humor: “Ninguém escapa da morte e dos impostos!”. A tal velha da morte é assunto muito vasto em romances, poesias, contos, teatro, cinema e crônicas. As vezes com seriedade e outras com zombarias. E a mesma é muito ironizada pelo criativo nordestino, o qual ri até da própria miséria em que vive. Não escapa das piadas e chacotas, e nem dos apelidos, como estes: mulher da foice, velha do facão, entre outros. O escritor e estudioso dos costumes sertanejos, Oswaldo Lamartine, que se foi sem esperar pela temida velha, a chamava de Caetana. Câmara Cascudo dizia que vivia muito ocupado para pensar na dita cuja. E o mesmo só se referia aos amigos que partiam como ‘encantados’. O termo ‘morte’ não era verbalmente utilizado pelo nosso mestre do folclore brasileiro.

Vou citar apenas dois folcloristas que abordaram a temida mulher da foice. Leonardo Mota, cearense, que publicou um trabalho de pesquisa de campo sobre o ‘Adagiário Brasileiro’ e discorre alguns ditos populares sobre a morte, como: Mortalha não tem bolso, Morre o cavalo a bem do urubu, Morre o homem, mas fica a fama. Outro folclorista, o pernambucano e meu saudoso amigo Mário Souto Maior, publicou, fruto de suas pesquisas, o livro intitulado ‘A Morte na Boca do Povo’, em 1974, recheado de ditos populares e superstições relacionadas a senhora da morte. Nunca ouvi a referência nas histórias que me contaram em alpendres e calçadas interioranas de que a morte aparece em forma de homem. Sempre dizem ser ‘mulher’.

Todo sepultamento que vou em Pendências/RN, trago na lembrança algumas superstições do povo de lá. Uma vez fui advertido que devia sair do cemitério antes do coveiro. Fiz carreira para o portão frontal e a pessoa que ficou e saiu depois do coveiro morreu em pouco tempo. De outra, ajudava a carregar o caixão de um tio e, ao chegar na entrada do velho cemitério, fui alertado que deveria pegar novamente o caixão para entrar, pois quem dá início a caminhada tem que terminar. Minha mãe contava-me que tinha um senhor lá em Pendências, sua terra, que fazia companhia aos velórios a noite toda, mas não entrava no cemitério por superstição e medo. Parava na entrada e dizia bem sério para os curiosos: “Quem não é visto, não é lembrado!”. Em Mossoró/RN, tinha um senhor que adorava comparecer a velórios e acompanhar os sepultamentos, até de quem não conhecia. Era o finado mossoroense, um amigo da morte! Mesmo assim, não escapou dela. Ouso nas feiras que ‘dela’ não se escapa!

Conheci uma mulher que ficava apavorada com notícias de morte, fosse quem fosse o morto. Não escutava rádio e nem via televisão, para evitar saber de desastres e mortes. Quando adoeceu, pediu que, ao ser levada para a sua última morada, não queria ser vista no caixão por ninguém e muito menos avisassem de sua morte aos vizinhos e amigos. Eu só soube que ela tinha esticado as canelas, depois de meses. Sempre digo aos pessimistas que me rodeiam: tudo tem um jeitinho, só não tem jeito quando a morte vem!

Quem me conhece sabe que não tenho superstição alguma com nada. Mas, como todo nordestino, tenho as minhas manias e atendo aos apelos populares, quando vem do nosso experiente e sábio povo, como: “não deixe a sua cama com os pés para a porta da frente!” Outro conselho me foi dado por uma velha rezadeira caicoense: “Não guarde dentro de sua casa espelho quebrado, pois dá azar e chama a morte!”.

Dizem que o diabo foi quem duvidou de uma mulher sertaneja e acabou preso dentro de uma garrafa. Mas, a morte até agora não foi enganada. Até aceita um acordo, dizem! A cultura popular é um mundo vastíssimo e antiquíssimo de crendices relacionadas a morte. Quando demoro a visitar uma amizade, ao chegar vou logo dizendo que estou escapando com esse bordão popular: Quem é vivo aparece!

Essa esticada delonga, justamente no mês mundial do folclore, é para contar a história do meu saudoso tio ‘Maneco Medeiros’, irmão de meu avô materno. Seu Maneco era magro, branco de olhos azuis e cabeça totalmente branca, como todos da família. Muito conversador, parecendo ter bebido água de chocalho ao nascer e brabo que só siri dentro de lata quando era desafiado. Não saia de sua casa sem a sua peixeira na cintura e sem a sua sinceridade verbal. Dizia o que queria a quem quer que fosse e não agradava a ninguém nesse mundo. Eu, criança, gostava de ouvir as suas prosas contadas bem altas, quase aos gritos: “Esse menino de Estela de Hermógenes vai ser um danado. Presta atenção a conversa dos mais velhos e com os olhos bem acatitados!”.

Pois bem, meu velho tio Maneco quando ainda moço e já casado adoeceu repentinamente e ficou acamado ou prostado, como diz o povo. Dias sem comer ou beber nada. Ficou tão definhado que a família logo providenciou a mortalha e o seu caixão, como também vestidos pretos para as mulheres e aquele paninho escuro que os homens e meninos usavam agarrados com um broche no bolso das camisas, o qual era chamado de ‘fumo’ e representava o luto em respeito ao falecido ou falecida familiar. Nordestino é prevenido e trata logo de resolver tudo antes da hora.

Todos da família só esperando a morte do irrequieto Maneco de Pendências. Em uma noite todos de sua casa não conseguiam dormir com seus altos gritos e bravatas ouvidos. Parecendo uma briga com uma mulher também braba e reclamando feito bode embarcado em caminhão: “A senhora não me leva hoje não, viu. Pode guardar sua foice brilhosa para cortar outro viu bexiga lixa. Leve quem você quiser que eu não vou de jeito nenhum, peste dos diabos. Sou muito moço para vestir o palitó guardado do meu casamento. Vá procurar serviço nos quintos dos infernos, aqui em casa não. Você só venha me buscar quando eu estiver velho, quase comendo papa, viu, sua mulesta dos cachorros. Eu não vou, aqui é Maneco Medeiros que não nasceu para temer a nada nessa vida. Vá se embora pra outras bandas que eu tenho um roçado meu para cuidar amanhã cedo. E fique sabendo que essa noite a senhora não me leva, nem que a vaca de papai tussa. Vai-te, satanás!”.

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Foto ilustrativa

No outro dia, logo ao cantar dos galos, o jovem Maneco manda a sua primeira esposa (a qual morreu primeiro do que ele, inclusive) preparar um café bem forte, coado no pano e um cuscuz com leite fervido dentro de um prato muito fundo. A fome era imensa dos dias de cama. Tomou banho, retirou a barba e vestiu uma roupa nova. Os familiares ficaram espantados com a visita de Maneco em suas casas e, imediatamente curiosos, queriam saber do que se tratava aqueles gritos e briga feia, feito cobra no mato com tijuassu: “Pelo amor de Deus, Maneco, o que houve? Conte tudo a nós, agora mesmo homem”. E o já sadio e alegre Maneco, de bucho cheio, senta-se em um tamborete revestido de couro de cabra e fala sobre a briga com a morte a noite toda daquele dia de sua doença grave: “Ela veio decidida a me levar. Era uma velha feia agarrada a uma foice muito brilhosa e afiada. Esperneou feito cobra choca, mas eu disse a miserável vestida de preto que só ia bem velhinho quando já tivesse quase comendo papa na boca, dada pelos outros”.

A curiosidade só aumentou do povo, mesmo os vizinhos, tendo escutado a dita grande e demorada briga noturna: “E o que essa velha lhe disse? Como ela se conformou e aceitou seu acordo com ela, só com sua conversa?”. Aí tio Maneco revela tudo de uma vez a Deus e o mundo de Pendências/RN: “A velha é teimosa, mas não me venceu. Muito contrariada e estrebuchando, me disse que vinha quando eu estivesse bem velho, porque dela ninguém escapa. Com muita raiva e para não perder a viagem, no meu lugar ia levar duas mulheres daqui da região. Fulana e Sicrana, ainda hoje mesmo, para eu ver que ela não brincava em seu serviço de cortar com sua foice gente viva!”.

Minha mãe, dona Estela, a qual nunca mentiu na sua vida e ainda era uma criança nesse tempo da referida história de seu tio, me contava que a zombaria foi total com a história contada por ele. Nem o delegado e o padre acreditaram na tal briga de Maneco com a morte, muito menos em seu acordo com a velha que costuma levar a gente desse para outro mundo. O que se soube foi que duas mulheres repentinamente faleceram após a dita briga. Uma de parto e a outra mais idosa de um surpreso ataque do coração. Nordestino é raciado com São Tomé e só acreditaram mesmo, quando tomaram conhecimento da morte das duas mulheres, cujos nomes seu Maneco já havia antecipadamente falado aos quatro cantos aonde esteve ao sair de casa naquele dia.

E para encerrar, juro a todos os leitores que esse meu tio Maneco, o qual conheci muito, foi o último dos irmãos que se foi. Já velho e lúcido contador de prosas, conhecido do Vale do Assu até Macau e redondezas. Foi um homem que ficou viúvo e casou pela segunda vez. Deixou vários filhos com a primeira e a segunda esposa, dona Maria, a qual conheci.

Quanto a mim, só espero que essa velha, teimosa como eu, me atenda e só venha me buscar quando eu estiver bem velho, mas lúcido e escrevendo as histórias ouvidas da boca do nosso santo povo!

            Mês mundial do folclore, morada São Saruê, Nísia Floresta/RN.

2 respostas para “MEU TIO QUE BRIGOU E CONSEGUIU UM ACORDO COM A MORTE”

  1. Ivanês Lopes disse:

    Maravilhoso é ler os escritos do Folclorista Gutemberg Costa. Ele se desencanta e escreve suas vivências de homem da Cultura Popular nordestina, que nos remete a tempos que não podem ser esquecidos.

  2. Affonso Furtado disse:

    Eita prosinha pra boi não dormir.Cativa intensamente os leitores levando os a querer mais e mais.