Tião morreu de amor pela Terra e pela humanidade

junho 8, 2025

Afonso Borges Tião da Lelinha (Sebastião Salgado) morreu de leucemia, por consequências das várias malárias que pegou nos países que trabalhou, principalmente, na África.

Afonso Borges

Tião da Lelinha (Sebastião Salgado) morreu de leucemia, por consequências das várias malárias que pegou nos países que trabalhou, principalmente, na África. Ele sofreu, durante anos e anos, as dores e incômodos que a sua vocação e determinação pela crença na humanidade lhe provocou.

Esta simbologia não é por acaso.

Tião foi um obcecado pela esperança na humanidade. A fotografia era um instrumento de proximidade que ele adotou das maiores causas: a defesa do planeta, o horror das guerras, a preservação do meio ambiente. Ele não pensava, agia. O Instituto Terra, seu maior legado, foi isso – pegou uma terra devastada e reflorestou. A Amazônia, mesma coisa: penetrou na floresta para mostrar que a vida dos indígenas tinha que ser cuidada da mesma forma que a própria natureza. Mas também fez um trabalho lindo em plantações de café pelo mundo afora.

Ao mesmo tempo, era o menino de Aimorés. Só fotografava cantando as cantigas que ouviu quando criança. E passou a vida cantando. Tenho dezenas de áudio que ele me mandava, guardados. Sua voz grave e afinada, em português perfeito – e mineiro. Mais incrível é que as músicas que ele cantava eram as mesmas da infância, em um vilarejo perto de Aimorés, sem luz elétrica. Ele as ouvia aos domingos, quando os caminhoneiros chegavam e ligavam o rádio nas baterias.

Mas não tenho intenção de fazer biografia e nem falar o quanto era bom fotógrafo. Escrevo para apaziguar a dor de perder um amigo inigualável. Sincero, bruto, forte. Amável, cordial, bonito.

De fala represada e barítona, Tião sabia se impor pela força do argumento e pela leveza das imagens que desenhava com a voz. Atento aos substantivos da vida, não era de perder tempo com mesuras. Dizia o que tinha que ser dito, sem medir consequências. E poucas vezes errava.

Era um leitor contumaz. Casa cheia de livros, espalhados, sua cadeira de leitura, na sala tinha pilhas ao lado. Cansou de dizer, em entrevistas e palestras, da importância da leitura na sua vida e a sua capacidade de expansão de conhecimento. E era um leitor muito criterioso e crítico.

Mas era o amor o seu maior predicado. O amor que tinha pela Lelinha, pelo Rodrigo e pelo Juliano. Pela família e pelos amigos. O seu amor pela Lelinha era coisa de tingir o coração de alma. Alma não tem cor, alma não tem cheiro. Mas o amor do Tião pela Lelinha tinha alma, cheiro, coração, uma constelação de bondades e brincadeiras. Sim, Tião da Lelinha era super brincalhão, na intimidade. E se transformava no menino de Aimorés quando falava da sua mulher. Eu tive a felicidade de testemunhar este amor e trazê-lo para a minha vida, como algo a ser alcançado, imitado, um exemplo. E tenho feito isso.

Arrisco a dizer: Tião foi talhado no amor da Lelinha. Ali ele encontrou forças para enfrentar as mazelas da humanidade e as belezas da natureza. Porque Tião mostrou para o mundo o feio e o bonito. A guerra e a a nuvem. O céu e o vulcão. Mostrou a morte, a destruição. Mas também mostrou a vida e a beleza mais profunda que a íris pode ver. E morreu contaminado por ela. Morreu contaminado por um protozoário transmitido por um mosquito, que transmite a malária. O que isso quer dizer? Quer dizer que até na morte Tião mandou um recado: onde está a vacina da malária? Interessa ao Ocidente gastar milhões de dólares para desenvolver uma vacina para uma doença predominante no continente africano? Aí voltamos ao início: Tião morreu de amor pela humanidade.

E como nunca saiu de Aimorés, suas cinzas voltarão para lá, para sua obra mais bonita: o Instituto Terra, sob o olhar carinhoso de Lelinha, seu amor

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