SOBRE FINADOS
NILO Emerenciano – Arquiteto e escritor Sofro, pra que esconder, de uma fobia talvez incurável, a tanatofobia, isso mesmo, o medo da morte.

NILO Emerenciano - Arquiteto e escritor
Sofro, pra que esconder, de uma fobia talvez incurável, a tanatofobia, isso mesmo, o medo da morte. Na verdade, não tenho medo, e sim pavor. Ah, Nilo, você é espírita, como pode, não sabe da imortalidade?
Oras, como diria minha tia, a coisa é irracional, tal como o medo de avião, que aliás também tenho. Sabemos que é seguro e tudo o mais, mas temos medo assim mesmo. Como dizia Ariano Suassuna,
"na estrada o carro enfrenta alguns buracos, no avião o buraco é um só, enorme e sem jeito".

Nada demais. Minha mulher tem medo de elevadores, vejam só. Eu poso de corajoso, machão, temerário: - Não tenha medo, eu estou aqui, como se isso resolvesse alguma coisa.
Quanto a ser espírita, esclareço: meu medo não é do depois. Do outro lado não tenho nenhum receio, o além não me assusta. O que vier a gente enfrenta, e se não vier nada, apenas a gente apagar, sumir, desaparecer, a gente encara também numa boa, como afirma de uma maneira linda a nossa roqueira Rita Lee em sua Segunda Autobiografia. Afinal, encaramos e sobrevivemos a quatro anos de irracionalidade
criminosa.
O nó é o durante. Esse, sim, o transe, os hospitais, a UTI, a respiração ofegante, enfim, os trâmites que
as vezes as pessoas enfrentam, passivas e impotentes.
Essas reflexões são provocadas pelo feriado de finados, quando as pessoas vão aos cemitérios homenagear seus mortos. Não sei se vocês já visitaram um cemitério em dia comum, quando eles estão vazios. Não há como a gente deixar de refletir sobre a transitoriedade ao caminhar entre os túmulos.

Fui pesquisar sobre a morte, talvez para exorcizar um pouco esse medo. Descobri, feliz, que não estava só em minha curiosidade que alguns diriam mórbida. Muita gente boa se debruçou sobre o assunto e há até uma ciência, a Tanatologia, que estuda o fenômeno. Na USP, em São Paulo, há o Laboratório de Estudos Sobre a Morte que funciona desde 2000.
Descobri também que a literatura é ampla, a começar por Katherine Kübler-Ross, psiquiatra suíça que, radicada nos EUA, lidou com milhares de pacientes terminais e desenvolveu o conceito dos cinco estágios do luto. Seu livro, 'Sobre a Morte e o Morrer' é best seller mundial. Há quem tenha escrito a história da morte no Ocidente, já pensou? Philippe Ariès, medievalista, o fez, e sua obra, a 'História da Morte no Ocidente' é referência para quem quer que se debruce sobre essa área.


Há quem encare a indesejada das gentes com bom humor. Jorge Amado escreve talvez o seu melhor romance, 'A Morte e a Morte de Quincas Berro d`Água'. Érico Veríssimo experimenta o realismo fantástico e em Incidente em Antares descreve como, durante uma greve de coveiros, os mortos voltam à cidade, se reúnem no coreto da praça e passam a visitar suas famílias e amigos. Por falar em realismofantástico, Juan Rulfo, escritor mexicano, descreve em 'Pedro Páramo' a saga de uma família contada/vista de entre os mortos de uma cidade fantasmagórica.
O sanfoneiro Waldonys, misto de paraquedista e piloto, conta que levou o padre da sua cidade do interior para uma volta de avião. Lá pras tantas cismou de assustar o vigário e fez uma manobra em que a aeronave parece estar caindo desgovernada. E aí gritou para o assustado homem de Deus:
- Padre, parece que o senhor vai encontrar Jesus! O padre gritou sem pensar no que dizia:
- Não diga uma desgraça dessas não, meu filho!

Gostaria de ter frente à morte a mesma indiferença de Epicuro, (342-270 a. C.) que afirma: “Ela e eu nunca nos encontraremos, se estou vivo é porque ela não chegou e se ela está, então significa que já não estou.” Ou a serenidade de Benjamin Franklin, que escreveu em seu epitáfio: “Aqui repousa, entregue aos vermes, o corpo de Benjamin Franklin, impressor, como a capa de um velho livro cujas folhas foram arrancadas, e cujo título e douração, apagados. Mas por isto a obra não ficará perdida, pois reaparecerá, como ele acreditava, em nova e melhor edição, revista e corrigida pelo Autor.”
Manoel Bandeira, genial, escreve em 'Consoada':“Quando a Indesejada das gentes chegar/ (Não sei se dura ou caroável), /talvez eu tenha medo. /Talvez sorria, ou diga:/ — Alô, iniludível! / O meu dia foi bom, pode a noite descer. / (A noite com os seus sortilégios.) / Encontrará lavrado o campo, a casa limpa, / A mesa posta, / Com cada coisa em seu lugar.”
Em 'Momento num Café', ele é mais explícito e descreve um grupo de homens indiferentes ao enterro que passa. Apenas um deles tira o chapéu num gesto largo e demorado e olha o esquife longamente. “Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade / Que a vida é traição / E saudava a matéria que passava / Liberta para sempre da alma extinta”.
Ah, eu gostaria de poder dizer também que a mesa está posta e a casa limpa. Aí talvez, sim, eu passasse a encarar a morte não como uma inimiga à espreita, mas como uma velha e presente namorada. E confirmar que a boa morte é apenas a culminância de uma vida bem vivida.
