RODA, PIÃO
NILO Emerenciano – Arquiteto e escritor Sou do tempo do Buzi.

NILO Emerenciano - Arquiteto e escritor
Sou do tempo do Buzi. Alguém sabe o que era? Uma balinha de doce de leite, acho, pequena e quadradinha. Perfeita para chupar no escurinho do cinema. Delícia. E também dos dropes Dulcora. E uma curiosidade: vocês sabiam que existiam dropes de uísque? Pois é. O recheio dos dropes era uísque, de verdade.

Imaginem só nos dias de hoje. Super politicamente incorreto. E mais, eram vendidos chocolates embalados como cigarros. A gente colocava na boca e fingia fumar cigarros de verdade. Eram outros tempos, com certeza. O açúcar reinava, absoluto.
Nossas mães colocavam nas laranjas, nas bananas amassadas com canela, na rapa de coco, na água (tome uma garapinha, meu filho), sem saber o mal que faziam à nossa saúde. E ainda misturavam açúcar no vinho e nos serviam como sangria. Se vocês olharem o teor alcoólico do vinho vão ver que as crianças eram iniciadas cedo nas delícias das biritas.

Mas porque falo nisso? É que nos meus passeios com minhas cachorrinhas Belinha e Mel observo os muros altos das residências, os mais altos ainda dos condomínios, as ruas desertas, mal iluminadas e por isso inseguras e me ponho a pensar: de que brincam as crianças de hoje?
Explico. Fui garoto em uma rua pequena, de poucas casas, mas vizinho de uma família que tinha nada menos que sete crianças. Além das outras que vinham de perto brincar conosco, já que na rua havia mais sossego.
A noite era uma festa. Brincava-se dentro das casas ou em plena rua até nossas mães chamarem. Os brinquedos variavam. Lembro de Peia-quente, temida pois quem a encontrava punha-se a bater em quem estivesse próximo. Da Amarelinha, riscada no chão a nos exigir certa coordenação motora, pois era pulada com uma perna só. O Garrafão, superdivertido. Brincar de Tica, ou Tica-cola, sempre foi sucesso. Uma variação era o Soldado-e ladrão, o Esconde-esconde, Bandeirinha.

Coisa de meninas era pular cordas ou o Bom barquinho, mas quem se recusava a participar? Consiste em fazer as crianças passarem em fila por um túnel formado por outras duas, sempre cantando:
“Bom barquinho, bom barquinho Deixa-nos passar Carregados de filhinhos Pra Jesus criar Passarás, passarás A bandeira há de ficar Se não for o da frente há de ser o de detrás”. Aí acontece a graça da brincadeira, pois as crianças que formam o túnel baixam de repente os braços e prendem alguém que vai ter que escolher o nome de uma fruta. “Pera, uva ou maçã?” Cada fruta corresponde a uma prenda, beijo, abraço, ou aperto de mão. Claro que apesar da tenra idade já havia alguém a se insinuar nisso tudo. Cala-te boca...
Brincava-se também dentro das casas, nas salas ou jardim. Berlinda, quem lembra? O fulano na berlinda era alvo de todo tipo de comentários, alguns, de alguém de asa caída, eram elogiosos. Passar anel, Estátua, Dança da cadeira, Bambolê. Pipa a gente chamava papagaio. Eu, particularmente, gostava mais de fabricar a pipa de que ficar horas olhando pro céu.
Brinquei de patinete fabricado por mim. Aliás a gente fabricava carro de cocão, espadas, escudos. Que tipo de crianças eram vocês? Ora, do tipo comum, desenvoltos, atrevidos e habilidosos. Rolimãs a gente pedia nas oficinas de automóveis e a madeira nas calçadas das lojas.

Na casa do meu amigo Djair Lucena (onde anda?) havia ferramentas disponíveis em um barracão no fundo do quintal. Dalí saiam os futuros Ayrton Senna para pilotar nas ladeiras os carros de cocão. Não perguntem onde aprendíamos isso, pois não sei. Só sei que era assim. O carro dispunha de freio, fazia manobras a esquerda e a direita, o escambau. Funcionava? Ora, estamos todos vivos e inteiros, não é? Algumas escoriações não matam ninguém…
Havia outros brinquedos menos votados. Empurrar um aro com uma espécie de varão; espetar o chão com um ferro formando algum tipo de desenho; iô-iô; bilocas à 'vera', ou seja, apostando; jogo de pião O meu pião é feito de goiabeira ele só roda com ponteira na palma da minha mão roda pião bambeia pião. Dia desses alguém me disse que os pirilampos estão em processo de extinção. Será? Tristeza. As gerações futuras não vão poder ver a beleza que é o pisca-pisca dos bichinhos na noite escura. Tanta coisa que já perderam, como correr atrás de tanajuras anunciando chuvas (cai, cai, tanajura), amarrar uma linha no rabo do que chamávamos zig-zig e depois descobrimos tratar-se de libélulas, caçar lagartixas com baladeiras, fazer bolas-de-meia (eu era muito bom nisso). Aliás, acho que bola-de-meia é uma arte perdida na noite dos tempos. Não sabem o que era? Fácil. Bastava roubar uma meia das nossas mães ou tias, daquelas longas, transparentes, e arranjar estofamento para enchê-las e do jeito certo formar nossas bolas. Neymar reclamou das bolas do campeonato paulista, não foi? Já sei, nunca jogou com bola-de-meia. Pelé e Garrincha, com certeza, iniciaram as suas carreiras em Três Corações e Pau Grande tocando a pelota de meia nas ruas e terrenos baldios. Ia esquecendo de falar nos jogos de botão. Os ônibus usavam fichas que a gente despejava em uma urna ao sair. Claro, embolsávamos as fichas e com elas fazíamos nossos botões, usando como cola o leite do dedinho-do-cão (avelóz) ou o esmalte da mamãe. Colar, lixar, passar cera de carnaúba, dar nome aos jogadores e ao time (o meu, claro, era o Flamengo), era um longo e delicioso processo. Alguém fazia botões de quenga de coco. Outros de baquelite, vejam só, o primeiro material plástico criado. Uma mesa, um botão de camisa como bola, duas caixas de fósforo para os goleiros e vamos lá! Em viagem recente, conversando com meu filho, falei das facilidades das novas gerações. "- Pai, ele falou, não tenho inveja nenhuma, nem troco a minha infância e adolescência pela deles". Como sempre, ele tem razão. Fiquei muito feliz com isso. Também não troco a minha, com meus brinquedos e brincadeiras, e tento manter vivo o menino que ainda há em mim.


