QUEM SOUBER QUE CONTE OUTRA

setembro 10, 2023

Nilo Emerenciano  – Arquiteto e escritor  Estava na fisioterapia dia desses, levando aqueles choquinhos desagradáveis e pensando em dar um cochilo, quando me ocorreu que há palavras perfeitas, encaixadas, justas, que exprimem exatamente aquilo que querem dizer.

Nilo Emerenciano  - Arquiteto e escritor 

Estava na fisioterapia dia desses, levando aqueles choquinhos desagradáveis e pensando em dar um cochilo, quando me ocorreu que há palavras perfeitas, encaixadas, justas, que exprimem exatamente aquilo que querem dizer. Cochilo é uma delas. Só em pensar me dá sono. Co-chi-lo. Não poderia ser outra coisa, uma fruta, um animal, um esporte. Já pensou alguém ser praticante de cochilo? Um campeonato mundial de cochilo? Aquele rapaz é o que? Um cochileiro. Muito menos um nome próprio. Cochilo dos Anzóis Pereira? Nem imaginar.  

Cochicho também, já pensaram nisso? Não sussurro, ou murmúrio, que têm beleza poética, admito, (sussurro das águas, murmúrio do vento) mas não passam essa sonoridade do falar baixinho no ouvido de alguém, cochichando, seja uma fofoca ou uma declaração de amor. 

Bunda, que me perdoem os mais pudorados, é outra dessas palavras. Que sonoridade! Bun-da. Absolutamente perfeita. Não me interessa a etimologia, se vem do latim, do grego ou o que seja. É perfeita. Lembra até o movimento das nádegas, no sobe e desce que eternizou a Garota de Ipanema.  Aliás, esse movimento se chama re-bo-la-do. Quem inventou? Quem foi o primeiro que, ao ver passar aquela morena fingindo inocência, tirando o sossego da gente, sacudindo a bunda pra lá e pra cá, teve a ideia de exclamar: - Que rebolado! Quem? Oscar da categoria pra esse cara iluminado.  

Bofete poderia ser coisa diferente? Não é palavra, é uma onomatopeia. A gente fala e espera a queda humilhante, sonora, desmoralizadora. Ninguém diz tomei um bofete. Todos adoram falar em voz alta, dei um bofete. Tapa não tem a mesma sonoridade. É uma palavra curta, insuficiente. Nem soco. Nordestino não dá soco quando provocado, isso é coisa de cinema americano. Ele aplica um sonoro bofetão, de preferência no pé da orelha ou das ventas do infeliz que provocou.  

Tartaruga. No tempo que a gente leva pra soletrar tar-ta-ru-ga, ela não deu sequer um passo. Nem pensou nisso. E ainda esticou o pescoço olhando em volta, curiosa. E tu, tatu? Há bicho mais tatu que o tatu? Triplo salto carpado o batizado do nosso simpático peba. Outra das minhas preferidas é minhoca, que achado. Tente imaginar outro nome pra aquele bicho sem pé nem cabeça, se contorcendo, enriquecendo nossos jardins com seu húmus (ou palavra feia). Não vai achar. É minhoca mesmo, quem batizou foi um gênio. Imagino a cena no Jardim do Éden, Abel falando pra Adão: - Que bicho é esse, papai? - Nunca vi antes, meu filho. Eva deve saber, ela acha que sabe tudo.  Mas tem o jeito de ser uma...minhoca.  

Agora vejam outra possibilidade. Um bicho feio, agressivo, com uma cauda em formato de anzol e um ferrão na extremidade, além de garras ameaçadoras. E uma ferroada superdolorida. Como você batizaria? Eu, aqui, em meio aos meus choquinhos, não tenho a menor dúvida: escorpião.  

Nossos irmãos tupis que habitavam a terrinha desde tempos imemoriais eram geniais. Palavras como grude, beiju ou tapioca, vamos combinar, são o suprassumo da perfeição. Grudes, para quem não sabe, ainda hoje são vendidos ali em Extremoz, e se você tem a sorte de ter um café coado no pano para acompanhar vai conhecer um pouco do que é o paraíso gastronômico. As tapiocas se tornaram moda nos cafés da cidade, recheadas com queijo, presunto ou outra coisa qualquer. Mas aquela vendida nas feiras, em uma folha de bananeira, molhadinha de leite de coco, dê licença, são irresistíveis. Verdadeiras tapiocas de sabor nordestino.  

E não me venham com novidades pouco expressivas. Alfajor poderia ser qualquer coisa, um casaco ou uma bolsa. Cardigã, me poupem, por favor. E outrossim, tenham a santa paciência, que diabos é isso? Jamais usaria essa expressão seja lá o que for que signifique. Alguns esnobes falam' 'destarte'. Dá vontade de responder com uma grossura.  '

Fico com as ricas interjeições usadas pelo povo. Oxente é muito bom. Vixe Maria, também. Minha tia tinha um rico vocabulário dessas interjeições. Todas depreciativas. A minha preferida era “miserável infeliz das costas ocas”. Vejam só: o cara é miserável, infeliz, e ainda tem as costas ocas, que no sertão da minha tia queria dizer que era tuberculoso. Pode haver insulto pior?  

O sertanejo abandonou o litoral em busca de terras para cuidar do gado. Criou seu mobiliário e roupas próprias, usando couro e madeira, conservou palavras como vosmecê, aviar, adjutório. Valorizava a coragem e a honradez nos tratos feitos. Respeitava a família. Tirava o chapéu e olhava para o alto sempre que se falava no nome de Deus. Baixava a cabeça quando estava com pessoas importantes. Bebia discretamente, condenando os excessos. Nos bailes, partilhava a parceira para que os solitários pudessem dançar. Sempre com um olho no gato e outro no peixe, claro.

Galinha Caipira Panela de Barro, no Pau Brasil, em São José de Mipibu - Foto: #restgalinhacaipira

Aos domingos comia galinha torrada e adoçava a boca com rapadura. Dizem até que um homem vindo do Cabrobó, interior de Pernambuco, se dirigiu à igreja para a missa dominical. Isso nos tempos das missas em latim, quando o padre dizia dominus vobiscum, e o sacristão respondia: et cum spiritu tuó assim, acentuando no final. No encerramento o homem buscou a sacristia e questionou o padre, querendo saber o que o fez insultá-lo durante a missa. O padre estranhou, e ele continuou: - O senhor dizia - De onde vem esse bicho? E seu sacristão respondia – Vem do Cabrobó...  

Gosto assim. Começo com um assunto e acabo em outro. Talvez isso seja o que chamam escrita automática, quem sabe, as sinapses funcionando a todo vapor. Sempre soube que conversa puxa conversa. Palavra puxa palavra, como nos alpendres das fazendas. Quem souber que conte outra. 

Uma resposta para “QUEM SOUBER QUE CONTE OUTRA”

  1. Carlos Antonio Soares da Silva disse:

    O crinista é um entusiasta maravilhoso, mesmo desencadeando dum assunto a outro. 🤣