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fevereiro 20, 2022

Pequenas e grandes mentiras

Nilo Emerenciano – Arquiteto e escritor O golpe de 1964 nos foi, durante muito tempo, impingido como uma revolução.

Nilo Emerenciano - Arquiteto e escritor

O golpe de 1964 nos foi, durante muito tempo, impingido como uma revolução. E apesar de o Congresso Nacional haver sido fechado, os partidos extintos, os direitos suspensos, a censura perseguido músicos, teatros, revistas e jornais, a prática da tortura e os desaparecimentos se tornarem corriqueiros, insistia-se que não havia existido uma ditadura. Ou apenas uma ditadura “branda”.

O antropólogo paulista Luiz Mott obteve notoriedade ao afirmar a homossexualidade de Zumbi de Palmares, além de por em dúvida a virilidade do capitão Virgulino Lampeão. Fico a pensar o que diria o Capitão antes de sacar da lambedeira e castrar o sujeito. Aliás, a cordelista Dalinha Catunda (Ipueiras/CE) tomou as dores:

Cada um tem seu gosto
E toma sua decisão 
Há coisa que não aceito
Mexer no cu do sujeito
Que está debaixo do chão(...) 

Essa história é sem sentido
Ninguém acredita nela
Pois bunda de bandoleiro
Não foi porta nem tramela
Era saída e mais nada
Não consta que foi entrada/
Não azeitou a arruela.

Nas cidades do interior havia a prática de se distribuir pelas portas das casas cadernos escolares preenchidos à mão, contendo calúnias e acusações graves que atingiam a moral de alguém. Durante semanas os caderninhos eram comentados pelas comadres faladeiras.

O ator Mário Gomes, que durante algum tempo brilhou nas telas da Globo, teve a reputação manchada por uma noticia vinculada em jornal que afirmava haver sido internado em hospital com uma cenoura enfiada no ânus. O autor da fake foi o desafeto Carlos Imperial, enciumado pelo caso que sua então esposa Betty Faria mantinha com o ator.

Aqui na província, o prefeito Agnelo Alves foi durante anos acusado de haver mandado incendiar o velho mercado da Cidade Alta. Motivo? Favorecer o surgimento dos supermercados como em uma autêntica teoria da conspiração.

O ex-governador José Cortez Pereira de Araújo sofreu tal campanha de ridicularização envolvendo a sua esposa d. Aída Ramalho e a compra de itens supérfluos, com ênfase em 188 sutiãs, além de 50 toneladas de peixe do Canto do Mangue, que praticamente o alijou da vida política do estado.

Primeira dama do RN, Aída Ramalho com o marido, governador Cortez Pereira - Foto: Portal Abelhinha

Goebbels, ministro de propaganda de Hitler, usou e abusou das fakes. Tinha convicção de que mentiras repetidas se tornam verdades. Stalin também foi useiro e vezeiro das falsas notícias, alterando a história de acordo com a sua conveniência e a do partido.

Aliás, Nero, após queimar parte de Roma em seus sonhos megalomaníacos, atribuiu a culpa aos cristãos aproveitando para persegui-los ainda mais.

Elvis ainda vive, o assassinato de Kennedy foi fruto dos delírios de um louco solitário, Constantino viu uma cruz antes da batalha decisiva, houve um papa mulher, um homem da máscara de ferro.  

Porque lembro tudo isso? Porque vivemos hoje sob o signo das informações falsas, do boato institucionalizado, dos profissionais das mentiras. Tudo bem quando são inofensivas. Há quem ache que embaixo do morro de Ponta Negra há um imenso tesouro enterrado. Ou que o homem não foi à lua sendo tudo uma armação da NASA. As pirâmides foram obra de extraterrestres. A terra é plana.

Dia desses vi uma senhora no supermercado examinando minuciosamente a caixa de leite. Sem que eu perguntasse me disse que havia um número que indicava a quantidade de vezes que aquele leite havia sido recolhido e colocado de volta nas gôndolas. Deixei quieto. Poupei-me de perguntar qual o louco que deixaria os indícios de seus crimes.

Na minha rua havia um vigia, seu Miguel, especialista em fakes. Eu percebia as falhas nos seus relatos, mas gostava de ouvir mesmo assim. Histórias de lobisomem, de batatão, caiporas, mula sem cabeça. Ele sempre tinha o papel do destemido. Os coleguinhas acreditavam piamente e eu nada fazia pra desfazer a opinião deles.

Mas uma noite eu estava meio atravessado do juízo e além do mais mamãe já havia chamado pela segunda vez e o tom da voz já era  ameaçador. Miguel estava em meio a uma história interminável, que envolvia inclusive cangaceiros, alguns tiros e golpes de peixeira. Nesse momento ele seguia levado pelos “cabras” para um grotão. Não resisti, vi que mamãe punha a cabeça na porta (ela dizia que não chamava três vezes) e então perguntei:

- Seu Miguel, vamos, diga de uma vez, o senhor morreu? Morreu?

Não preciso dizer que durante muitos dias fui excluído do grupo de conversas.

Nunca, nesses anos verdes, imaginei que no Brasil um dia alguém iria defender o nazismo ou atacar vacinas. Mas enfim, é ano de eleições e devemos estar preparados para as tantas mentiras e agressões que ainda estão por vir. Acredita quem quiser. Já foi divulgado que Bolsonaro evitou o conflito Rússia/Ucrânia/OTAN. E que merece o Nobel da paz. Fazer o quê? Afinal, há quem acredite até em Saci e Papai Noel...

NATAL/2022

3 respostas para “Pequenas e grandes mentiras”

  1. Vanda disse:

    Fantástico, a crônica. Parabéns. Mas que você escreve bem, ah! Isso é verdade. Parabéns!

  2. Dodora do Apodi disse:

    Que maravilha saber escrever assim.

  3. MANOEL+MARQUES+DANTAS disse:

    Excelente matéria. Mentira vem de longe e sabemos quem é pai dela, o diabo.