PAREDE DA MEMÓRIA

julho 21, 2024

NILO Emerenciano – Arquiteto e escritor Os brotinhos do tempo do ronca – tempos da minha pré-adolescência – tomavam um caderno escolar, daqueles com uma espiral de arame, enchiam de perguntas indiscretas e passavam para colegas responderem.

Praça André de Albuquerque – Fatos e Fotos de Natal Antiga


NILO Emerenciano - Arquiteto e escritor

Os brotinhos do tempo do ronca – tempos da minha pré-adolescência – tomavam um caderno escolar, daqueles com uma espiral de arame, enchiam de perguntas indiscretas e passavam para colegas responderem. Chamavam a isso “Questionário”.

Traziam perguntas as mais variadas: Gostas do flerte? Já beijou alguém? E coisas do tipo. Vocês hoje não saberiam sequer o que danado é flerte. Assim como também ninguém olha mais de soslaio. Flerte era isso, troca de olhares furtivos, sorrisinho acanhados, às vezes um bilhetinho. - Ah, era a paquera, tio Nilo? Não sei, acho que era mais furtivo, sutil.

A paquera, pelo menos como eu lembro, constava de um arrastar de asa, o passar vezes sem fim em frente da casa da moça, tirar para dançar nos bailes do ABC na vesperal do domingo.

As revistas ditas femininas (Capricho, Sétimo Céu) traziam uma seção de Correio Sentimental. Ali os candidatos/as descreviam seu tipo físico: “Tenho um metro e sessenta e cinco, morena, olhos claros, 23 anos, gosto de cinema e música. Desejo relacionamento sério com finalidade de namoro e casamento. Troca de fotos na primeira carta. Assinado, Coração Solitário”. Vocês podem rir, mas as vezes essa coisa funcionava e gerava casamentos, já pensou?

Conheci dois casos, um deu certo e o outro não. O cara veio de São Paulo para sequenciar a coisa e a moça na hora H deu no pé, ou vazou, como falam hoje em dia. Depois apareceu um número de telefone – o 139, acho – chamado Disque Amizade, para onde os solitários discavam em busca de relacionamentos.

Caíam em uma sala de conversa e quando o papo engrenava eram direcionados para o que hoje
chamaríamos “privado”. O próximo passo era marcar um encontro presencial. Não é de estranhar, portanto, os sites de relacionamentos, forma moderna de se expor e conhecer pessoas.

Nós estranhamos, mas, pensando bem, qual a forma que a turma hoje teria para novos namoros e mesmo mantê-los, principalmente aqueles sem tempo para o que se chamou, no século XIX, fazer a corte?

Ou entoar serenatas que eram também uma forma de se homenagear a amada. Hoje o seresteiro seria
assaltado e perderia voz e violão, além do celular e grana. Sem descartar a possibilidade de o pai da moça jogar um balde de, queira Deus fosse apenas água, na cabeça dos atrevidos.

Ah, eu ia esquecendo. Outra ocasião boa acontecia nas quermesses tipo Festa da Mocidade. Ali na praça André de Albuquerque, centro de Natal, era armado um parque de diversões com todo tipo de equipamento: roda gigante, carrossel de cavalinhos, balanços, túnel do horror, a mulher que virava gorila, tiro ao alvo, jogo de argolas, roletas, além de comidinhas como maçãs do amor, algodão doce, rolete de
cana, pitombas, geleia de coco, refresco de maracujá, cachorro quente em retalhos(!) e tantas coisas mais.

Além disso uma espécie de DJ comandava a trilha sonora transmitindo através de alto-falantes espalhados pela praça. E haja Silvinho, Lindomar Castilho, Agnaldo Timóteo, Ângela Maria cantando Cinderela (Cinderela/Cinderela/Menina moça, coração a palpitar/ Cinderela, eu sou/ Cinderela/ E o meu príncipe encantado vai chegar).

O locutor recebia também dedicatórias meio cifradas e as lia para todos ouvirem: - Para alguém moreno vestindo camisa azul e calça preta, M.C. com carinho dedica: Cabeciiiinha no Ombro!! E aí rolava: “Encosta a tua cabecinha no meu ombro e chora/ E conta logo a tua mágoa toda para mim...”.

Há até uma graça feita por alguém, de uma dedicatória misteriosa para um cidadão que imaginamos fosse casado e que terminava assim: - Essa música vai com amor para alguém chamado O.X.! O buxixo corria solto. Quem seria O.X.? Como nada se esconde sob os céus e sempre tudo vem à tona, lá para as dez da noite já se sabia. O homenageado era um cidadão chamado Ontonho Xofer.

Havia também códigos para os iniciados. Uns grupos formados por moças percorriam a praça no sentido horário e os garotos faziam a rota inversa, para estar volta e meia se cruzando, ocasião de olhares e algumas frases mais atrevidas. Se a moça-alvo gostasse, falava alto, para ser ouvida: -Ai, da base! Caso contrário e não houvesse interesse o despacho era fatal: - Passando, abacaxi, que tomei leite!

Após algumas voltas nesse moído às vezes paravam e iniciavam as primeiras conversas. Onde você mora, qual o seu nome, estuda em qual colégio? As mãos no bolsos para esconder o nervoso, a boca seca e o medo de a moça pedir para pagar alguma coisa.

Eita, fui muito longe nessa conversa. Tempos de Parque São Luís, de uma certa inocência, de fé na vida. Como diz Belchior em Como Nossos Pais: “Já faz tempo vi você na rua/ cabelo ao vento/ gente jovem reunida / Na parede da memória/essa lembrança é o quadro que dói mais”.

Nesses arquivos da memória a Roda Gigante continua girando célere como a própria vida, e, ao fundo, Waldick Soriano continua cantando canções de amor e dor.


Uma resposta para “PAREDE DA MEMÓRIA”

  1. Boas recordações! Eu vivi muitas destas; era um tempo de muita decência: no vestir, nas amizades, nos flertes e namoros, no respeito aos pais e professores.Tempo bom!