O primeiro passo

dezembro 22, 2024

Raimundo Brasileiro Augusto – Poeta e Escritor (Residente na Casa da Pedra Oca – Praia de Camurupim, Nísia Floresta RN) Meu avô nasceu à beira-mar, mas nunca se atreveu tomar banho com água além da cintura.

Arte: "Primeiros passos", de Vincent Van Gogh, após Jean-François Millet.

Raimundo Brasileiro Augusto - Poeta e Escritor (Residente na Casa da Pedra Oca - Praia de Camurupim, Nísia Floresta RN)

Meu avô nasceu à beira-mar, mas nunca se atreveu tomar banho com água além da cintura.

Cresceu ali admirando os homens que desafiavam as ondas bravias do oceano sem fim, com suas jangadas em busca de uma boa pesca, mas mantinha-se distante dessa lida. Água acima do joelho já o deixava paralisado, em pânico total!

Alto, magro e musculoso, era destemido para o trabalho na lavoura e a árdua atividade com cavalos e gado. Bom vaqueiro, daqueles de passar dias e noites na busca e captura de boi bravo e vaca parida perdidos nos tabuleiros de Tibau.

Na casa havia fartura do necessário: feijão, farinha, milho, batata doce, inhame, macaxeira, jerimum e frutas frescas. Os temperos eram cultivados na horta da minha avó, no quintal. Leite, de cabra e de vaca, sobrava na mesa e servia também como moeda de troca para suprir outras necessidades da família. Nada faltava nas panelas sobre o fogão a lenha. Também não faltavam cortes de tecidos para vestir a família, trocados por leite, com Joca da Loja, ou feijão e farinha com o mascate Porfírio da Burra.

Certa feita, meu avô saiu pela madrugada para vaquejar gado de solta, perdido pelos tabuleiros.

Minha avó acabara de recolher as miunças de cabras e bodes no chiqueiro, no final daquela tarde, quando meu avô reapareceu tangendo o gado recolhido. Mais de dúzia, gado gordo, resultado do pasto nativo do verde de inverno.

Exausto e sujo, Zé Grande Vaqueiro, como era chamado, prostrou-se na rede do alpendre. Ali perto, eu engatinhava pelo terreiro da casa, tentava me levantar, fazia um grande esforço para ficar de pé, voltava a cair, e ele me espiava com ternura. Não desviava o olhar nem por um segundo. Embevecido e orgulhoso do esforço do primeiro neto para aprender a caminhar.

O cansaço pareceu abandoná-lo naquele instante, tomado por uma leveza se espalhando por seu corpo sujo, fluindo na pele, nos olhos. Abriu o peitoral da camisa e deixou a brisa do mar lhe vestir o corpo, sem desviar a vista do meu enorme empenho para me por de pé. Pensou em levantar do conforto da rede e ir em meu socorro, mas desistiu. Preferiu continuar sentindo a brisa fresca do final da tarde vestir seu corpo que cheirava a boi.

De repente, soltei as mãos do chão e me pus de pé, dei meu primeiro passo e sorri em direção ao vaqueiro. Seu rosto marcado de sol se enterneceu ao me ver vencendo o medo do primeiro passo. A exaustão do vaquejador dos tabuleiros sumiu por completo. Sentiu o espírito e o corpo ameninarem e correu em minha direção. Com a mão de amansar boi sem torturas e fazer partos difíceis de cabras e vacas, me acolheu no colo, aconchegando com carinho e ternura.

Retirou o chapéu de couro que também cheirava a boi e cobriu a pegada do meu primeiro passo, para que nunca fosse apagado da terra.

O cheiro de boi do suor digno do meu avô ainda perfuma meus sonhos e minha alma!

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