O Brasil ficou mais careta. Uma pena!

maio 25, 2025

CEFAS CARVALHO – Jornalista e Escritor – Texto publicado no portal Saiba Mais Não sou nostálgico e nem resmungo o mantra “na minha época tudo era melhor”, seja lá que tempo tenha sido esse, não sou dado a saudosismos, e critico tal postura do pessoal da minha geração e quem me acompanha bem sabe.

CEFAS CARVALHO - Jornalista e Escritor - Texto publicado no portal Saiba Mais

Não sou nostálgico e nem resmungo o mantra “na minha época tudo era melhor”, seja lá que tempo tenha sido esse, não sou dado a saudosismos, e critico tal postura do pessoal da minha geração e quem me acompanha bem sabe.

Mas recordo de tempos próximos em que o país e sua população, de uma maneira geral, pareciam mais leves, livres e soltos. Sei que há uma série de complexidades envolvendo a questão e sei também que a história é cíclica, como apregoam os estudiosos. Mas vamos lá com uma frase direta já que este texto não é acadêmico e sim uma crônica: há alguns anos o país era menos careta do que atualmente!

Mas como e por que o Brasil ficou mais careta em tão poucos anos? Vamos lá com sociologia de botequim: nos anos 60 e 70, mesmo com o país sob ditadura militar (que inclui, claro, vigilância aos costumes em nome da “moral”), aproveitamos a cultura global de liberação para ter bolhas libertárias em plena ditadura.

Já nos anos 80 e 90 tivemos o pós-redemocratização que em pouco tempo gerou uma espécie de “era de permissividade” dos costumes que não raramente flertava com a alopração (quem não se lembra da banheira do Gugu ou dos programas noturnos da Band com moças de seios de fora?).

Era como se o Brasil estivesse se tornando o paraíso libertário como somos vistos frequentemente por estrangeiros. Sensação reforçada com a chegada de Lula e um projeto progressista ao poder em 2002 e o consequente aumento de renda da população (dinheiro não compra felicidade mas paga as contas e pode sobrar algum para as coisas que nos dão prazer).

Contudo, ao mesmo tempo (entre 2014 e 2018) aconteceu o crescimento assombroso das igrejas neopentecostais, a presença desses evangélicos nos espaços políticos, o uso das mídias e internet por parte desse pessoal e o golpe que tirou Lula do poder e prendeu Lula, abrindo caminhos para a eleição de alguém da extrema-direita (Bolsonaro) aliado justamente dos evangélicos neopentecostais. Pulverizando inclusive a antiga direita, em 2018 representada por Alckmin (hoje vice-presidente) ligado à igreja católica (que usa menos espaços políticos e midiáticos que evangélicos).

Os quatro anos de Bolsonaro no poder somados a uma pandemia que obrigou a confinamento e mudança drástica de costumes, construíram um terreno fértil para a tentativa de diminuir direitos (da população LGBTQIA+, mulheres, negros, povos originários) e de criar um patrulhamento de costumes. Irônica e paradoxalmente, e isso daria um texto à parte (além de me expor a levar pedradas), os equívocos e exageros na defesa das pautas identitárias acabam servindo para a cultura de policiamento tão cara à extrema-direita. Mas, cala-te boca e deixemos esse risco para uma outra ocasião.

O certo é que o patrulhamento moral institucionalizado, a evangelização de parte da população com base em regras comportamentais rígidas (pelo menos na teoria e em público), mais a sensação de eterna vigilância causada pela internet e celulares com câmera podem ter tornado a nós, enquanto população mais caretas e mais intolerantes.

Fazendo um breve e banal exercício de comparação: como a opinião pública receberia hoje um grupo musical com homens maquiados e o vocalista se contorcendo em trejeitos femininos (Secos e Molhados surgiu e brilhou em plena ditadura, lembremos)? Ou uma série de TV na qual a protagonista insinua se masturbar em sua cama (“Malu mulher”, vivida por Regina Duarte)?

Que tal um seriado, às nove da noite, na qual dois amigos dividiam a mesma mulher (com cenas do trio dormindo e acordando na mesma cama) e adotando um pré-adolescente abandonado que acompanha o estilo de vida com surf e possível consumo de maconha? Falamos, claro, de “Armação ilimitada”, sucesso absoluto na Globo entre 1986 e 1988.

A sociedade hoje aceitaria e assistiria “Armação ilimitada” tranquilamente, como aconteceria? Ou teríamos deputados e senadores do PL pedindo o cancelamento da série e propondo CPI para investigar a Globo por disseminar a perversão?

Como eu registrei antes aqui, o mundo é cíclico. Tivemos historicamente momentos de liberalidade (Roma e Grécia antigas, Belle époque francesa) e períodos de obscuridade (Idade Média, Inquisição). Na verdade, a ascensão da extrema-direita e sua pauta de moralidade é global e o Brasil acaba estando a reboque disso, embora tenha seus processos específicos. Mesmo assim, não deixa de ser uma pena perceber, ainda mais entre amigos, conhecidos e parentes, essa “caretice” crescente.

Torcer para que nesses ciclos, nos próximos anos, com mais um ou dois governos progressistas e a extrema-direita golpista definitivamente presa ou afastada da vida pública, esse caldo cultural seja revertido. Nem precisa ser o bundalelê dos anos 90, com Mamonas Assassinas cantando para as criancinhas que na tal suruba não comeram ninguém, nem Faustão servindo sushis no corpo de uma modelo nua em plena tarde de domingão.

Por falar nisso, vale a pena evocar a letra de “Reconvexo”, de Caetano Veloso, imortalizada na letra de Maria Bethânia: “Você não me pega / Você nem chega a me ver / Meu som te cega, careta, quem é você?”

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