LEMBRANÇAS DE MEU PAI

junho 16, 2024

Nadja Lira – Jornalista • Pedagoga • Filósofa Agostinho Florêncio da Silva nasceu em Santana do Mato.

Nadja Lira – Jornalista • Pedagoga • Filósofa

Agostinho Florêncio da Silva nasceu em Santana do Mato. Ficou órfão de mãe quando tinha oito anos e meu avô, Vicente Tintim da Silva casou-se com vovó Firmina, que cuidou de meu pai e de meus tios, como se fossem seus próprios filhos. Ela ainda teve duas filhas com o meu avô. Eu não conheci nenhum dos meus tios paternos. Somente as tias. A mais velha, Maria Anunciada – mora em Fernando Pedrosa e é uma crente extremada. A outra, Maria da Conceição, morava em São Paulo, mas morreu com um aneurisma cerebral.

Meu avô teve filhos no primeiro casamento: Manoel, José e Agostinho (meu pai, que era o caçula). Ele dizia que sempre foi um menino levado. Não queria estudar, então meu avô contratou um padre para dar aula na fazenda onde eles moravam. Os outros irmãos estudavam, enquanto meu pai só queria brincar. O padre fazia de tudo para despertar o interesse dele, mas não conseguia nada.

Papai contou-me certa vez, que esse padre (não lembro o nome), tinha um belo canivete com o qual talhava imagens em madeira. Papai encantou-se com o canivete e num descuido do padre, ele escondeu o canivete para brincar depois da aula. Ocorre que, ao final do dia, o padre foi embora e ninguém percebeu meu pai brincando com o canivete. Ao final da brincadeira, jogou o canivete dentro de uma cisterna bastante funda, que havia no quintal da casa.

Todos foram jantar e depois da tradicional contagem de histórias, eis que por volta da meia-noite chega o padre batendo à porta procurando o canivete. Meu avô que já estava habituado às traquinagens do meu pai, foi direto acordá-lo. “- Agostinho, cadê o canivete do padre?”. E como ele não mentia, foi logo dizendo que havia jogado no fundo da cisterna. Meu avô também não quis acordo. Deu-lhe um banho, amarrou uma corda na cintura e o mandou mergulhar na cisterna para pegar o canivete. Depois do terceiro mergulho, ele encontrou o canivete. O padre foi embora feliz e papai levou uma bela surra, porque meu avô não aceitava suas peraltices.

Aos oito anos de idade, ainda não sabia ler, apesar dos esforços do meu avô e do empenho do padre. Um dia, meu avô atrelou uma pequena carroça e o mandou comprar mantimentos no armazém de um compadre, no centro da cidade. Ao chegar ao local, papai encontrou um bocado de meninos brincando com pião. Ele fez as compras, arrumou tudo na carroça e juntou-se aos meninos na brincadeira. Ele dizia que era um exímio jogador de pião e, esqueceu o tempo passar. Nem percebeu que o dono do armazém estava de olho nele.

Brincou o tempo que bem quis e quando se preparou para ir embora, o dono do armazém deu-lhe um bilhete para que ele entregasse a meu avô. O bilhete dizia a hora em que ele foi atendido e o tempo que perdeu brincando com os outros meninos.

Ele, na sua inocência entregou o bilhete ao meu avô e, sem saber o porquê, levou uma surra daquelas. Chorando, soluçando e se lamentando, ouviu as explicações do irmão mais velho, que entre outros adjetivos o chamou de burro, por entregar ao pai um bilhete contando suas peripécias. E ele, profundamente surpreso perguntou ao irmão: "- Então, aquele pedaço de papel trazia fofoca dizendo que eu estava brincando?" E o irmão gargalhando acenou afirmativamente. E ainda acrescentou: “-Essa surra poderia ter sido evitada se você soubesse ler”. Esse foi o maior estímulo que ele recebeu para se empenhar nos estudos e aprender a ler, rapidamente.

Mas, seu grande sonho era estudar música, o que só conseguiu realizar graças a ajuda de vovó Firmina, que o mandava para a escola de música, escondida do marido, correndo sério risco de também apanhar junto com meu pai. Dedicou-se ao estudo da música e se especializou em partituras. Deixou um acervo com mais de 600 composições. Tocava na Banda de Santana do Matos. Um dia, decidiu mudar-se para João Câmara, onde conheceu minha mãe – uma professora loira e linda, segundo suas próprias palavras.

Trabalhava na Prefeitura Municipal e à noite tocava na Banda de Música do município. Nos finais de semana tocava nos bailes do Baixa-Verde Esporte Clube e nas cidades da região. Era um homem bonito, sério e muito paquerado pelas mulheres. Ele era galanteador. Falava aquilo que as mulheres gostam de ouvir.

Casou-se com 23 anos e minha mãe, com 21. Quando nasci, ele decidiu deixar a vida pacata na cidade do interior e aventurar-se no estado de Goiás, que segundo ele, era o "El Dourado", da época. Pegou minha mãe e eu e, partimos para Goiás, indo morar em Itumbiara. Minha mãe não gostou do lugar, porque era muito violento. Além disso, ela não gostava do barro vermelho e das chuvas fortes com relâmpagos, trovões fortes. Morria de medo. Papai logo começou a tocar na Banda de Música e a vida seguia. Mas, depois de três meses, mamãe decidiu voltar para João Câmara.

Como eu era muito pequenininha, lembro muito vagamente da despedida. Meu pai me abraçando, chorando e um caminhão na porta esperando por nós. Entrei no caminhão chorando muito, porque não queria me separar do meu pai. O pior foi descobrir, no meio da viagem, que eu havia deixado o meu lençol preferido! Isto é tudo que eu lembro.

Voltamos para a casa da minha avó e então, meu pai continuou a viajar pelo Brasil. Ele dizia que nesse período trabalhou em tudo o que aparecia, sem jamais esquecer a música. Onde chegava, trabalhava durante o dia e à noite tocava. Assim, participou de grupos que acompanhavam os cantores famosos da época: Ângela Maria, Nelson Gonçalves e Cauby Peixoto. Ele contava muitas histórias e aventuras vividas nessas turnês.

Eu estava com sete anos quando meu pai retornou a João Câmara. Lembro-me do dia em que chegou. Minha mãe acabara de me dar banho e eu usava um vestidinho azul. Pulei no pescoço de papai gritando feliz e mais feliz ainda fiquei, quando ele abriu a mala e me entregou o meu lençol favorito e depois me levou na mercearia de Seu Zacarias para comprar chocolate. A vida voltou ao normal. Ele retomou seu emprego na Prefeitura de João Câmara, e a participar da Banda de Música, além de tocar nos bailes do Baixa-Verde Esporte Clube.

Jazz Band Municipal de Baixa Verde fazia sucesso nos bailes

Com a volta de papai, eu já começara a estudar e tinha nele um grande aliado e incentivador para realizar as tarefas escolar, especialmente, de Matemática, disciplina na qual sempre tive muita dificuldade. Ele era muito paciente e aos meus olhos de criança, era o homem mais inteligente que eu conhecia. Ele também falava muito sobre os lugares por onde andou, onde trabalhou, as coisas interessantes que viu e aprendeu.

Foto Ilustrativa

Meu pai lia para mim todos os dias. Depois do almoço, ele costumava tirar uma soneca antes de voltar para o trabalho, mas sempre lia uma história para mim. Esse hábito despertou em mim o gosto pela leitura, que me acompanha até hoje. Ele também me estimulava a sonhar e planejar meu futuro. Mesmo depois que minha irmã nasceu, nós continuamos como a nossa rotina de cumplicidade nas leituras, nas conversas, idealizando o futuro, enfim, construímos uma convivência muito boa.

Ele gostava de contar piadas, das quais eu ria de morrer e ele ria de mim. Ele também gostava de elucidar charadas e me ensinou como “matar” uma charada: basta saber sinônimos. E eu acabei me tornando exímia nesse negócio. Ele ficava muito orgulhoso quando dizia uma charada e nenhum dos seus amigos conseguia matar. Então, ele dizia: "- Nadja, diga a resposta!" Eram momentos muito bons aqueles que vivi com meu pai.

Outra coisa da qual ele também se orgulhava, era quando minha mãe me arrumava e ele me levava para passear e me apresentava aos amigos. Ficava estourando de orgulho, quando eu estirava a mão tão pequena para o amigo: "- Muito prazer! Nadja Maria Lira e Silva."

Aos domingos, os amigos dele que tocavam na Banda reuniam-se lá em casa para tocar e acabaram fazendo uma música para mim. Eu era a única criança naquele meio, porque papai era o único casado. Os que eram casados, ainda não tinham filhos, então eu era tratada como uma princesinha.

Papai era muito sério, mas quando contava uma piada e todos riam, percebia-se que ele não era tão sisudo como parecia. Eu herdei esse traço de sua personalidade. As pessoas também me acham muito séria, até que eu conto uma piada.

Ele gostava de ler de tudo, especialmente sobre Filosofia. E me dizia que a Filosofia era uma disciplina muito importante. Que todos deveriam estudá-la porque ela era a disciplina que nos ensinava o porquê das coisas. Ele era muito amigo do padre da cidade, o Monsenhor Lucena, de saudosa memória. Passava horas e horas na casa do padre conversando sobre Filosofia e quem lucrava com o aprendizado era eu. Tudo o que ele aprendia com o padre, repassava para mim. Assim, cresci encantada com a Filosofia e graças a Deus consegui realizar aquele que era um sonho meu e dele, de estudar a dita cuja. Tenho certeza de que se ele estivesse aqui fisicamente, estaria muito feliz e orgulhoso por me ver estudando Filosofia.

Dele também herdei o gosto pela música de qualidade. Quando eu era criança, ele me pedia para aprender as músicas de sucesso que tocavam no rádio. Depois eu cantava para ele, que passava para uma partitura e tocava em casa. 

Durante o tempo em que morei em Baixa-Verde, todos os domingos ia ao cinema da cidade com meu pai. Ele era louco por filmes de todos os estilos, mas tinha uma preferência especial pelos filmes de terror e eu o acompanhava. Divertia-me com as cenas mais horripilantes, até os 16 anos, quando tive medo de um filme cujo vampiro era feio e sanguinário demais. Fiquei com tanto medo que até hoje não vejo mais este tipo de filme.

A maior lição que o meu pai me ensinou foi vencer meus medos. Quando eu era menina tinha medo do escuro, mas ele me ensinou a superar esse medo. A casa da minha avó, Dona Nenê, localizada na antiga Rua Nova, tinha um corredor bem grande que ficava sempre escuro. Então, eu ficava na sala e ele na cozinha me chamando para atravessar aquela escuridão. O medo era grande demais, mas ele dizia: "- Venha, eu estou aqui lhe esperando. Se você não tomar coragem, jamais vai superar esse medo". Eu saía na maior carreira e me jogava nos braços dele. Dizia que eu era uma menina muito corajosa e que daquele dia em diante eu não teria mais medo do escuro. Eu acreditei nas palavras dele e perdi o medo!

Meu pai foi meu maior amigo, admirador e incentivador para todas as coisas que eu quis fazer na vida. Sempre contei com o apoio dele para tudo. Nós nos admirávamos mutuamente. Tínhamos algumas opiniões diferentes acerca de alguns assuntos, mas sempre nos respeitamos. Sinto saudades do meu pai. Minha relação sempre foi mais profunda com ele do que com a minha mãe.

Nadja Lira (autora desta crônica)

Durante seu estágio de doença, fui eu quem o acompanhou até o último minuto. Hoje, olhando para trás, percebo que ele era um homem de muitos defeitos, mas de muitas qualidades também. Estudou o espiritismo durante metade da vida e dizia ter lido a Bíblia mais de 20 vezes. “- A cada leitura que faço, tenho uma interpretação diferente”, dizia. Se hoje ele estivesse aqui, teríamos muito o que conversar sobre Filosofia. Tenho certeza de que nossas conversas seriam bem longas, porque agora eu aprendi um pouco sobre o assunto.

"Deus precisava de um trombonista para a Orquestra do Céu e levou meu pai para preencher esta vaga. Sei que ele tocando muito feliz e encantando a todos que ouvem sua música" NADJA LIRA

!

3 respostas para “LEMBRANÇAS DE MEU PAI”

  1. Robson Rafael de Freitas disse:

    Grandes amigos!!!

  2. Humberto disse:

    Parabéns amiga Nadja, lembro muito de seu pai. Um abraço

  3. Carlim d'Bee disse:

    Crônica emocionante amiga, especialmente para quem conheceu e de certa maneira teve o privilégio do convívio com o mesmo. Abraço fraterno.