Filme: AINDA ESTOU AQUI

fevereiro 9, 2025

Cefas Carvalho – Jornalista e Escritor Enfim assisti a um dos filmes do ano passado, vencedor do prêmio de melhor roteiro em Veneza, onde chamou a atenção, que deu o Globo de Ouro de melhor atriz de drama para Fernanda Torres.

Cefas Carvalho - Jornalista e Escritor

Enfim assisti a um dos filmes do ano passado, vencedor do prêmio de melhor roteiro em Veneza, onde chamou a atenção, que deu o Globo de Ouro de melhor atriz de drama para Fernanda Torres. Concorreu e/ou ganhou mais dezenas de prêmios e está indicado para três Oscars (Filme, atriz e filme internacional). Não bastasse isso, ainda trata de um tema delicado, forte e importante (desaparecidos e mortos durante a ditadura militar no Brasil) e de quebra vem batendo recordes de bilheteria no país. Mais que um sucesso, é legítimo afirmar que pelo alcance mundial e trajetória o filme é um fenômeno. Quanto à qualidade cinematográfica, superou minhas expectativas, que já eram altas.

A história, como todos sabem, é real e o filme é baseado no livro de mesmo nome do romancista Marcelo Rubens Paiva. Conta a história da família formada pelo engenheiro Rubens Paiva, pela dona de casa Eunice e os cinco filhos, que vivem numa casa em frente à praia, no Leblon, em harmonia e felizes mesmo com a tensão da ditadura militar vigente (a história começa em 1970, em pleno AI-5). Até o dia em que policiais à paisana chegam na residência para levar Rubens para um interrogatório. No dia seguinte os agentes levam Eunice e a filha mais velha para também serem interrogadas, liberando-as dias depois após detenção e pressão psicológica.

Contudo, Rubens não volta para casa. E a família e amigos descobrem que a polícia e o Exército sequer admitem que ele foi preso. A partir daí, Eunice começa uma dolorosa batalha para descobrir se o marido está vivo ou morto, enquanto tem de lidar com os filhos e as ameaças dos agentes da ditadura.

É uma história impressionante. Como realidade sabe-se, e não vai aqui exatamente nenhum spoiler, que Rubens foi morto e seu corpo jamais encontrado. Eunice se tornou advogada e referência pelos direitos dos indígenas e, também, na luta por informações sobre os desaparecidos durante o regime militar.

Como cinema, "Ainda estou aqui" é brilhante em forma e conteúdo. Contando com um roteiro preciso e rico em detalhes e sutilezas, Walter Salles (artesão de filmes como "Central do Brasil", "Abril despedaçado" e "Diários de motocicleta") conduz a narrativa de maneira sóbria sem jamais cair no didatismo ou apelar para a emoção fácil (que com outro diretor ou numa produção de Hollywood seria inevitável).

Fotografia e edição do filme são igualmente sóbrios e eficientes, com sutilezas entre luminosidade e escuridão para indicar os estados de espírito da família e a ditadura em volta da casa (e do país). Já a direção de arte é absolutamente brilhante. Tudo no filme remete aos anos 70, tanto o óbvio, como automóveis e locais públicos, como a detalhes como objetos de decoração, móveis, azulejos.

O elenco merece um parágrafo à parte, claro. Todos estão bem, as crianças e adolescentes são extremamente bem dirigidos e convencem em papéis que vão de emoções viscerais até sutilezas quase invisíveis. Selton Melo, que obviamente só está em cena no primeiro terço do filme, compõe um Rubens discreto e carismático, feito mais de pequenos gestos e frases curtas e espirituosas, marido e pai amoroso sem cair na armadilha fácil das emoções.

Mas em um filme com tantas qualidades e um elenco tão bom, Fernanda Torres consegue elevar o nível de tudo um patamar acima com uma atuação excepcional e inesquecível. Os prêmios conquistados e o favoritismo para o Oscar (junto com Demi Moore em "A substância", que infelizmente não assisti) evidenciam que a percepção da grandeza de sua interpretação ganhou escala mundial. Uma interpretação feita de silêncios tanto quanto de olhares. De dores guardadas e de não-lágrimas, tanto que Fernanda não chora (no sentido cinematográfico, caudaloso) em nenhuma cena do filme.

Inclusive já se tornou famosa a cena em que repórteres fazem uma foto para uma revista sobre a família com pai desaparecido e pedem uma foto séria, no que Fernanda/Eunice, sentenciam: "Nós vamos sorrir, sorriam", diz para os filhos. Fernanda também está excelente nas nuances da transformação da dona de casa e mãe em tempo integral em advogada e militante. Enfim, atuação de primeira, muito próxima de ser reconhecida pelo prêmio maior da indústria cinematográfica, o mesmo que em entrevista no Roda Viva nos anos 90, a própria Fernanda, presente em dezenas de memes, diria que era impossível ganhar. A terra plana não gira, capota mesmo.

"Nós vamos sorrir, sorriam", diz Eunice (Fernanda Torres) para os filhos.

Vale salientar que o filme, mais que fazer um painel amplo sobre uma ditadura, enfoca um recorte específico: como uma ditadura pode impactar (com risco de destruir, o que não foi o caso) uma família. No caso a família Paiva, já que o livro é uma autobiografia, uma memória de um tempo. Injusto e absurdo cobrar recortes e amplitudes maiores do que o livro, portanto o filme, se propôs e propõe desde o início. Ainda assim, ou justamente por isso, o filme consegue ir longe e afetar um imenso público.

Observações bem pessoais:

1) Não sei como alguém pode não ter gostado desse filme, ainda que respeite que cada um tem sua bagagem emocional e estética para amar ou odiar um filme e que toda unanimidade é burra, como diria Nelson Rodrigues.

2) Acredito que o imenso público (incluindo jovens) que estão assistindo o filme nos cinemas somado ao hype com a obra (que pode ser potencializado com vitória no Oscar) podem gerar interesse coletivo nas novas gerações sobre a história do país, a ditadura militar e os direitos humanos. O que é uma ótima notícia em tempos em que a extrema-direita ganha espaço e que jovens mostram desinteresse por pautas progressistas.

3) O sucesso (de crítica e bilheteria) do filme somado ao êxito de público de "O Auto da Compadecida 2" (também com Selton Mello) podem, sim, fomentar mais uma revigorada no cinema nacional, após períodos difíceis com Temer e Bolsonaro. Em 2025 vem filmes como "O agente secreto", de Kleber Mendonça Filho, com Wagner Moura.

4) O poder do filme vem do fato que se trata de história bem contada e de uma tragédia particular/familiar e não cai no didatismo ou no panfletário. Li em algum lugar que, Ainda estou aqui” não deixa transparecer em nenhum momento qualquer traço de engajamento ideológico e que apesar do pano de fundo político, a pretensão não é fazer proselitismo de esquerda. Ou seja, o filme é um drama, não um panfleto. Funciona como denúncia da ditadura e se alinha às pautas progressistas, mas não é feito neste sentido. Arte engajada explicitamente é bem intencionada mas, não raro, é pedante e não alcança resultados desejados. Aqui o filme causa empatia, não engajamento. E cinema é basicamente entrar na pele dos personagens e vivenciar dores (e/ou delicias).

Para finalizar: Filmaço. Com tema importante e atual. Corra e veja nos cinemas,que ainda está em cartaz (e que assim continue!).

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