De todas as coisas desimportantes, o futebol é a mais importante

junho 8, 2025

CEFAS CARVALHO – Jornalista e Escritor (Texto publicado na Tribuna do Norte) A frase que dá título a este texto é do escritor uruguaio Eduardo Galeano, que colocou de forma, digamos, literária um comentário do técnico italiano Arrigo Sacchi.

CEFAS CARVALHO - Jornalista e Escritor (Texto publicado na Tribuna do Norte)

A frase que dá título a este texto é do escritor uruguaio Eduardo Galeano, que colocou de forma, digamos, literária um comentário do técnico italiano Arrigo Sacchi. Sabemos todos que a vida é feita de coisas importantes e/ou necessárias mas também de coisas sem importância, do ponto de vista materialista ou filosófico, mas que podem assumir importância pessoal ou coletiva e transcender sua própria função e/ou razão de ser.

Como escreveu outro gênio, o poeta inglês H. Auden, “milhares viveram sem amor/nenhum sem água”. Verdade absoluta. Pode se passar uma existência inteira sem, amar ou ser amado, mas jamais sem H20 ou sem oxigênio e nutrientes. Recordo de um conflito numa mesa de bar, anos atrás, na qual um amigo insistia que era impossível viver sem poesia. Com retórica marxista. insisti que não se podia viver sem pão e sem uma fonte de renda. Há controvérsias, claro.

Não imagino minha vida sem livros e cinema, mas milhões vivem sem que tais itens sejam prioridade ou sequer presentes. Há coisas importantes no sentido básico da sobrevivência humana na Terra, portanto, e coisas desimportantes que podem se tornar importantes (como poesia, literatura, cinema, artes plásticas). Para Galeano e Sacchi, dessas coisas sem importância, o futebol é a mais importante delas, e não duvido. Vamos falar sobre minhas impressões sobre essa desimportância neste fim de semana.

No sábado, foi realizada a final da Liga dos Campeões da Europa entre PSG e Inter de Milão. O time francês tentando seu primeiro título, já que em 55 anos de história o mais perto que chegou foi o vice-campeonato de 2020, em plena pandemia, perdido para o Bayern de Munique. O escrete italiano já com três títulos, lutando para retomar a supremacia italiana no torneio, que o país não vencia há 14 anos.

Contudo, havia mais em jogo. Terminada a partida, com goleada de 5×0 para o time francês, com aula de futebol, a torcida do PSG estendeu imensa bandeira onde se via a imagem do técnico Luis Enrique e uma menina com a camisa do time fincando uma bandeira do PSG no centro do campo.

A homenagem fazia menção a cena vivida pelo treinador com a filha em 2015 quando campeão da mesma Liga dos Campeões da Europa pelo Barcelona, da Espanha. Mas a homenagem tinha a seguinte razão: a menina, Xana, faleceu em agosto de 2019, aos nove anos, após cinco meses de luta contra um tumor ósseo.

Seguir como técnico foi uma maneira de Enrique lidar com a dor: ”Xana está sempre conosco”, costuma dizer. A homenagem da torcida e a celebração do treinador usando uma camisa preta com um desenho da filha marcaram o momento, arrancando lágrimas das equipes de transmissão que acompanhavam a partida. Nunca é só futebol.

No momento lembrei de outros momentos em que o esporte transcende a si mesmo e suas limitações para ser algo mais. Como o já citado Barcelona, time orgulho da Catalunha, que durante o regime ditatorial do General Franco na Espanha, era símbolo de resistência, com a torcida cantando em catalão no estádio Camp Nou quando falar outra língua que não o espanhol era proibido.

Ou a rivalidade na Escócia entre os torcedores do Rangers, historicamente escoceses nativos e escoceses do Ulster, ou seja, protestantes, e os torcedores do Celtic, historicamente escoceses-irlandeses, portanto católicos. Há ainda momentos como a luta de Vinícius Júnior contra o racismo, na Espanha ou a voadora que o francês Eric Cantona, atacante do Manchester United, deu em torcedor fascista na arquibancada. Tanta coisa importante gravitando em algo tão desimportantes, como 22 homens chutando uma bola num gramado retangular.

PS 1: Este texto precisa registrar que durante quinze anos, a direção milionária do PSG sonhava em vencer a Liga dos Campeões e para isso gastou bilhões em craques consagrados, como Cavani, Ibrahimovic, Verratti, Draxler, Di Maria, Sérgio Ramos, chegando a juntar um ataque com Messi, Neymar e Mbappe, sem jamais obter êxito. Um ano após se livrar de Neymar (que foi para a Arábia Saudita e hoje é ex-jogador em atividade no Santos) e Mbapée (no Real Madrid), o time francês foi campeão de maneira brilhante com um ataque formado por um jogador execrado pelo Barcelona (Dembele), um georgiano até então razoavelmente conhecido (Kvaratskhelia) e um jovem de 19 anos da base (Doué), tendo um desconhecido equatoriano na zaga e um meio campo formado pelos discretos e nada midiáticos João Neves, Vitinha e Fabian Ruiz (os dois primeiros portugueses e o terceiro, espanhol).

PS 2: Como o texto falou da emoção pela lembrança da partida da menina Xana, registrar a partida neste início de semana de dois natalenses que eram personagens importantes da cidade: o ex-deputado, ativista cultural e torcedor do ABC, Cláudio Porpino, e o cineasta e ex-presidente da Samba, Augusto Lula. Farão falta por aqui. Que descansem em paz!

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