De algumas intolerâncias com a nossa cultura afro
Gutenberg Costa – Escritor, pesquisador e folclorista.
Gutenberg Costa – Escritor, pesquisador e folclorista.
Sabe-se que as discriminações relativas aos escravos que aqui vieram forçados, só nos causam vergonha até os dias atuais e em muito decepcionará nossos netos e bisnetos no futuro. É demasiado horripilante ver o povo negro em fotografias antigas, sem sapatos, vestidos em trapos e até marcados a ferros como gado. Caçados e negociados como propriedade, vendidos em anúncios na imprensa, da época, como mercadoria.
Batizados com novos nomes e também impostos, novas crenças aos santos brancos europeus da então Igreja Católica dominante. Nas Catedrais, entravam os brancos para suas rezas. Aos negros, tinham que construir as suas próprias igrejinhas, dedicadas à Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Alguns viveram ‘refugiados’ nas Irmandades de ‘São Benedito’ ou do ‘Rosário’. Uma fuga criativa e religiosa para tentar escapar do mandonismo católico branco e racista dos velhos tempos.
O assunto ainda é muito polêmico nos dias atuais, por incrível que pareça. Recentemente, no dia 21 de janeiro, nos foi lembrado o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa Afro. Dia para lembrar a tragédia ocorrida em Salvador/BA, com o Centro Espiritual da Mãe de Santo baiana Gilda, destruído, a qual partiu, em 21 de janeiro de 2000, por causa de um infarte devido aos danos dessa intolerância religiosa a seu santuário.
Temos ainda a data 20 de novembro, como o dia de Zumbi dos Palmares, para reflexão de lutas e preconceitos raciais do tempo da famigerada escravidão. Nada adianta se ainda está arraigada em nossa cultura a discriminação com o mundo afro e, principalmente, relacionada com sua religiosidade popular e tradição cultural folclórica. A ordem policial era acabar com rituais diferentes do catolicismo oficial e também as danças de grupos folclóricos, como os ‘Zambês’ e ‘Congos’. Liberadas as procissões e nada de ‘batuques’ nos terreiros e matas!
Curioso da temática, procurei ler João do Rio (1881-1921) e suas pesquisas aos Centros de Umbandas e Candomblés do Rio de Janeiro, publicadas em livro, em 1906. Como também a clássica obra de Roger Bastide (1898-1974), ‘As Religiões Africanas no Brasil’, de quase 600 páginas, segunda edição, de 1985. Recentemente, adquiri a séria obra ‘A Busca da África no Candomblé’, de 2018, em segunda edição, de autoria da professora Stefania Capone. Sempre fui lendo muitas obras do vasto assunto e viajando muito para Salvador e região, para ver de perto a expressão maior do nosso Candomblé e antigas Irmandades religiosas católicas com raízes afro. A nossa Bahia de todos os santos! Dos santificados por mim, Jorge Amado e Glauber Rocha. E das santas canonizadas - Mãe Menininha e Dulce!
Antes mesmo de 1928, o nosso folclorista Câmara Cascudo já estava em pesquisas de campo para seu futuro livro ‘Meleagro’, de 1951. Há registro do fechamento de corpo do respeitado pesquisador Mário de Andrade (1893-1945), em 1929, relatado por Cascudo, no terreiro do famoso Pai de Santo, ‘João Germano das Neves’, no bairro do Alecrim.
E eu dos anos 70 aos 80, mesmo criado no catolicismo e devoto do padre João Maria, visitei inúmeros terreiros afros em Natal para ver de perto como pesquisador seus rituais e festas religiosas. Fui sempre com o máximo respeito e até degustando com as mãos em seus pratos de barro as oferendas e iguarias oferecidas aos seus visitantes.
Assim, frequentei os sagrados templos de 'Seu Brasil'. Um negro de mais de dois metros de altura, bem forte, de óculos de grau bem avançado. Anéis em quase todos os dedos das duas mãos. Seu terreiro ficava por trás do finado Hotel dos Reis Magos, da praia do Meio. Na rua Belo Horizonte, estive algumas vezes na casa da famosa Mãe Albina, do bairro das Rocas. Há uns seis anos, voltei em sua casa/terreiro famoso e obtive uma foto da saudosa Mãe de Santo, doada para nosso arquivo, pelos seus familiares.
Ainda no bairro das Rocas, fui várias vezes ao Terreiro do também saudoso Zé Clementino (1930-2021), na rua Mestre Lucarino, 548. Nas ocasiões, tivemos longas conversas e anotei tristes depoimentos da maior memória viva de nossa religiosidade afro natalense.
Mestre Clementino começou ativamente em sua religiosidade afro nos anos 30 e foi presidente por décadas da Federação Umbandista do RN, fundada em 1963, com sede nas Rocas. Em uma de minhas idas, contou que durante um ritual a polícia local chegou, quebrou tudo e os levou presos. No outro dia chega na delegacia um homem de terno branco e conversa com o então delegado. Pouco tempo, ele e seus adeptos são soltos e o delegado Rodolfo Pereira, questionado insistentemente, confessa o nome daquele 'doutor' vestido de branco, suplicante e defensor de suas solturas: “Ele pediu segredo, mas eu vou dizer que vocês só estão soltos graças a um pedido do mestre Câmara Cascudo!”.
Contei essa história a amiga Anna Maria Cascudo (1936-2015), dias depois, e ela com lágrimas nos olhos, me contou de suas idas ainda bem jovem, acompanhando, muito curiosa, o seu pai pesquisador ao terreiro do mestre Zé Clementino.
Que me recorde agora, também estive em outros Centros, como o de ‘Zé Arimatéia’, nas Quintas, que depois de sua partida, foi liderado por sua mulher Neta. Nas Quintas tinha o Centro do Pai de Santo ‘Zacarias’. E ainda resiste o Centro do Pai de Santo, ‘Canindé’. Fui também em outros Centros em Igapó, como o de ‘Paulo’ e alguns na Redinha. Com certeza, ainda irei a outros convites aos terreiros Umbandistas, como também de outras denominações religiosas, kardecistas e filosóficas. Porta aberta com alegria e paz, eu entro em todo canto!
Através da saudosa amiga professora Zélia Santigo, conheci o seu pai, também professor, Sérgio Santiago (1900-1995) e na ocasião, 1983, em sua casa da rua Vaz Gondim, 789, Cidade Alta, na qual recebi o seu livro ‘O Ritual Umbandista’, fruto de pesquisas bibliográficas e de campo, em Natal e no Estado, nos anos 60/70, publicado em 1973.
Nos capítulos da referida obra, o autor relata as muitas discriminações e prisões sofridas pelos Babalorixás e Ialorixás, no RN, principalmente, em nossa capital, Natal. Algumas dessas relatadas pelos jornais impressos da época. Os líderes religiosos (homens e mulheres) eram maldosamente associados a feiticeiros, macumbeiros e catimbozeiros. As autoridades das outras religiões ditas de ‘Deus’, como as Católica e Evangélica, omissas a tudo que se passavam com os nossos sofridos mestres e mestras afros Umbandistas: “Quem cala, consente!”.
Historicamente, o primeiro terreiro afro que conseguiu autorização para realizar com liberdade seus cultos em Natal foi o do Pai de Santo ‘João Cícero Herculano’, só em 1944. Anteriormente, segundo informações de ‘Zé Clementino’, eram tomados de surpresa com prisões e quebra-quebra de seus instrumentos musicais e altares por parte de intolerantes e comandados policiais: “Fui preso mais de 40 vezes quando estava praticando meus rituais sagrados!’.
Tanto Câmara Cascudo quanto Sérgio Santiago relatam inúmeras prisões aos mestres e mestras de cultos afros em tempos dos séculos XVIII e XIX. Tudo autorizado por renomados delegados, defensores dos bons costumes e tementes a Deus!
Em relação ao saudoso mestre ‘Zé Clementino’ das Rocas, ainda insisti com vários amigos para fazer um documentário com o mais idoso Pai de Santo, de Natal, mas fiquei mesmo com a frustrada ideia na cabeça. Faltou-me uma câmera nas mãos! O velho mestre Clementino se foi de nós, em 21 de setembro de 2021...
Morada São Saruê, Nísia Floresta/RN.
Pai de santo nos terreiros
Que o tempo sacramentou,
Mesmo com a perseguição
Progrediu e se firmou.
Remontar essa história,
É proclamar a vitória
Sobre quem a discriminou.
Pai de santo nos terreiros
Que o tempo sacramentou,
Mesmo com a perseguição
Progrediu e se firmou.
Rememorar essa história,
É proclamar a vitória
Sobre quem a discriminou.
Tenho esse livro. Como vc respeito todas manifestações religiosas. A cultura africana tem seus encantos. Sou cristã assumida mas isto não me dá o direto de ser julgadora e nem cruel .