Carta Aberta ao jornalista Cefas Carvalho
Por Marco Túlio Cícero Assunto: Música Atual x Música do Passado Caríssimo Cefas Carvalho.
Por Marco Túlio Cícero
Assunto: Música Atual x Música do Passado
Caríssimo Cefas Carvalho.
Como fundador, presidente e único membro, da Associação Potiguar dos Sessentões de Bom Gosto Musical e Sem Preconceitos (APSBGMSP), venho compartilhar algumas reflexões sobre as suas postagens no “livro de rostos” de Zuckerberg — rede social que, curiosamente, tornou-se a favorita entre os “cinquentões”, “sessentões” e afins —, nas quais você aborda as comparações intolerantes e preconceituosas, entre a música de “antigamente” e a atual.
Em uma postagem de 02/09, você se diz espantado “com a quantidade de cinquentões aqui no Feicebique e nos grupos de zap que se prendem ao discurso que a música atual é uma merda, que os jovens só ouvem porcaria, que na tal ‘nossa época’ é que havia música de qualidade e etc. e tal”. Texto na íntegra aqui.
Desde já, saiba que compartilho do seu espanto. Além disso, acredito que esses comentários exacerbados e agressivos extrapolam uma mera preferência musical, e de forma alguma refletem uma preocupação genuína com o que os jovens escutam atualmente. O que se percebe é um preconceito disfarçado – ou, em alguns casos, nem tanto –, alimentado por essa onda de conservadorismo que tomou conta das redes sociais e do mundo em geral. E esse preconceito não se restringe à música – que, aliás, muitos desses “cinquentões” provavelmente nem conhecem –, mas atinge os próprios artistas, em especial, Pabllo Vittar e Anitta, mencionados em sua postagem.
Estamos falando de duas das maiores estrelas da música contemporânea, com impacto na cena cultural brasileira e internacional. E isso não se deve apenas à música, mas também às suas posturas contestadoras em relação a questões de identidade, política e direitos LGBTQIA+. São atitudes que desafiam a hipocrisia dos defensores “da moral e dos bons costumes” e incomodam a elite conservadora, da qual a maioria desses senhores e senhoras que estão “cinquentando” ou “sessentando” muito mal, fazem parte.
Dito isso, gostaria de tentar lançar alguma luz sobre essa eterna “pinimba” entre os defensores da música atual e da música do passado. Mas fique tranquilo. Prometo não me alongar em análises e citações sobre a “música do meu tempo”.
Um argumento em defesa dos “cinquentões” e “sessentões” (os sensatos, é claro) é que, em nosso tempo, a produção musical era incomparavelmente menor que a atual. Os meios de divulgação também eram mais limitados, o que nos protegia, de certo modo, de sermos bombardeados com músicas de qualidade questionável, embora elas também existissem.
Na minha infância e pré-adolescência, nos anos 70, grande parte da música que eu ouvia vinha dos programas de rádio e dos discos que meu pai colocava para tocar numa “radiolinha” portátil, daquelas em que o alto-falante ficava na tampa. Nas sessões musicais pós-jantar, costumávamos ouvir Nelson Gonçalves, Orlando Silva, Elizeth Cardoso, Ataulfo Alves, Sílvio Caldas, Altamiro Carrilho, Francisco Petrônio, Dilermando Reis, Clara Nunes, Paulinho da Viola, Martinho da Vila, entre muitos outros.
Foi nessa época que, nos primórdios da televisão em Mossoró, assistindo aos programas, “Porque Hoje é Sábado”, com Gonzaga Vasconcelos e, “Show do Mercantil”, com o ícone Augusto Borges, da TV Ceará Canal 2 (o único que “pegava”), conheci O Pessoal do Ceará: Fagner, Belchior, Ednardo, Fausto Nilo, Amelinha.
Destaco também a coleção “História da Música Popular Brasileira”, publicada entre 1970 e 1972 pelo selo Abril Cultural, como de fundamental importância para a formação, ou quiçá, revolução, do meu (bom) gosto musical.
Vendidos em banca de revistas, cada fascículo da coleção trazia a biografia de um artista e um LP de 10 polegadas (8 faixas). Noel Rosa foi o volume 1, Pixinguinha o 2, Dorival Caymmi o 3, e depois de algumas edições com os clássicos das “antigas”, vieram as “apostas” da época. Simplesmente: Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Gal Costa, Edu Lobo, Milton Nascimento, Jorge Ben, Nara Leão, Elis Regina, entre tantos que se tornariam clássicos tão clássicos quanto os já clássicos naquele momento.
É inegável que ter vivido na mesma época em que surgiam os “neoclássicos da MPB”, foi um privilégio para alguns “cinquentões” e “sessentões”. Ainda assim, não me faltaram críticas ao que se produzia naquele período, inclusive a algumas obras dos meus próprios ídolos. Exemplos?
Na década de 1960, Nara Leão gravou álbuns antológicos. Em Opinião de Nara (1964), a então “Musa da Bossa Nova” surpreendeu – ironicamente – o mundo da bossa nova ao gravar “Opinião”, de Zé Keti, música que acabou se transformando em um hino de resistência à recém-instalada ditadura militar no Brasil: “Podem me prender/Podem me bater/Podem até deixar-me sem comer/Que eu não mudo de opinião”. Nesse disco, ela também gravou “Acender as Velas” de Zé Ketti, e “Sina de Caboclo”, de João do Vale.
Na mesma linha, O Canto Livre de Nara (1965) apresentou a panfletária “Corisco”, uma parceria de Glauber Rocha e Sérgio Ricardo (“O sertão vai virar mar/E o mar vai virar sertão”), e repetiu a parceria com Zé Keti em “Malvadeza Durão”, “Nega Dina” e “Samba da Legalidade”; e com João do Vale no clássico “Carcará”. E Nara seguiu pelos 60 e 70 gravando pérolas, apostando em novos compositores ou usufruindo do talento dos amigos Chico Buarque, Vinícius de Morais, Tom Jobim, Gil, Caetano, como fez em Os Meus Amigos são um Barato, de 1977.
Eis que, em 1978, Nara Leão resolveu gravar um LP só com músicas de Roberto e Erasmo Carlos: E que Tudo Mais Vá pro Inferno. A crítica especializada abominou a ousadia e eu fiquei transtornado! “Fim de carreira para a bela Nara!”, pensei. Hoje em dia, basta eu tomar uma cerveja para colocar “Além do Horizonte” para tocar. É a melhor versão já gravada em todos os tempos, por qualquer intérprete, de qualquer música do chato do Roberto Carlos (ops!).
Em 1981, Chico Buarque produziu – na minha, metida a besta, opinião – sua obra-prima: Almanaque. Aliás, não é só a obra-prima da sua carreira, mas de toda a música brasileira. Acontece que no PA (pós-Almanaque) – também na minha, metida a besta, opinião – Chico fez coisas menos marcantes: Saltimbancos Trapalhões (1981); Chico Buarque en Español (1982); Para Viver um Grande Amor (1983) e O Grande Circo Místico (1983).
E foi nesse período de entressafra “chicobuarqueana”, que certo dia, durante uma discussão de mesa de bar, do alto dos meus 22 anos, cometi a heresia de esbravejar peremptoriamente que Chico Buarque havia perdido a inspiração. Que havia ficado obsoleto, preguiçoso. Que estava cantando mal e não conseguia mais compor músicas de excelência.
Então, em 1984, ele me “responde” com o LP Chico Buarque (só isso!) e essa “cacetada”: “Pelas Tabelas”, “Brejo da Cruz”, “Tantas Palavras” (com Dominguinhos), “Suburbano Coração”, “Mil Perdões”, “As Cartas” e… “VAI PASSAR!!!” (com Francis Hime). Definitivamente, Chico Buarque não sabe brincar!
Pois é, meu dileto e “espantado” periodiqueiro. A música do “meu tempo” permitiu-me criticar e questionar gênios e “gênias”. E até o final do século passado, evidenciando uma certa arrogância e uma pernóstica intelectualidade musical, preferi ficar preso naquele passado de “privilegiado musical”, bravateando de forma pretensiosa que a Música Popular Brasileira havia estagnado em João Bosco.
Foram os meus filhos, ainda pré-adolescentes, que me apresentaram Chico César, Zeca Baleiro e Lenine, e então passei a enxergar a nova turma que surgia. Claro que, depois de alguns álbuns lançados, também não faltaram críticas a esse trio inicial. Coisas do tipo: “Chico César e Zeca Baleiro – especialmente o segundo – são muito repetitivos”, “Lenine confunde criatividade com letras e melodias sem eira nem beira”, e por aí vai. E quem diria, né: “Mama África” (Chico César – 1995), “Heavy Metal do Senhor” (Zeca Baleiro – 1997) e “Hoje eu Quero Sair Só” (Lenine – 1997), já estão “beirando” os trinta!
E vieram muitos outros e outras – alguns citados em sua postagem – que ao longo dos últimos 25, 30 anos evitaram que eu me transformasse em um “sessentão” tedioso, conservador e saudosista.
Por enquanto, é isso. Fico por aqui com minhas elucubrações musicais, ou essa epístola aberta não fecha nunca.
Quanto ao sertanejo, que você também destaca como alvo da fúria de “cinquentões” ensandecidos, como diria Copélia, personagem de Arlete Salles no humorístico Toma Lá Dá Cá: “prefiro não comentar” (risos).
Grande abraço e saudações musicais.
Marco Túlio Cícero