Aquele que não tem pecado que atire a primeira pedra (versão extrema-direita brasileira)
CEFAS CARVALHO – Jornalista e Escritor – Texto escrito no Portal Saiba Mais Voltando do Monte das Oliveiras, de madrugada Jesus chegou ao templo e ensinava aos que o ouviam quando os escribas e fariseus trouxeram à sua presença uma mulher flagrada em adultério.
CEFAS CARVALHO - Jornalista e Escritor - Texto escrito no Portal Saiba Mais
Voltando do Monte das Oliveiras, de madrugada Jesus chegou ao templo e ensinava aos que o ouviam quando os escribas e fariseus trouxeram à sua presença uma mulher flagrada em adultério. E lembraram a Jesus que pela lei de Moisés as mulheres adúlteras deveriam ser apedrejadas até a morte. Jesus escrevia na terra com o dedo sem responder. Insistiram, até que Jesus falou: "Aquele que não tem pecado que atire a primeira pedra". Impactados pela frase e em debate com a própria consciência, os homens não atiraram pedras e começaram a se retirar do local. Sozinho com a mulher, Jesus a abordou: "Mulher, onde estão seus acusadores? Ninguém te condenou?". "Ninguém, senhor", ela respondeu. "Nem eu tampouco te condeno. Vai e não peques mais".
Acho essa história bonita. E fala de um tema que aprecio, a tolerância com as falhas alheias diante da observação dos nossos próprios defeitos, que também esperamos que sejam tolerados pelos outros. Mas preciso fazer algumas observações pertinentes, irônicas e comparativas. Como bem se sabe, essa história não foi escrita por Shakespeare, não está entre as aventuras de Dom Quixote, não se trata de um conto edificante de Hans Christian Andersen. Está na Bíblia, mais exatamente no Evangelho de João, capítulo 8, entre versículos 1 e 11. Como a Bíblia é um livro sagrado para cristãos, sejam católicos ou evangélicos, e Jesus é o filho de Deus na Terra e suas palavras são a verdade, deduzir que um ensinamento desses de fácil compreensão seja uma regra de vida para os que acreditam em Cristo.
Mas não é bem assim. Desde a oficialização do cristianianismo como religião oficial do Império Romano por Constantino, por volta de 300 d.c, a coisa desandou. Na verdade piorou muito com as Cruzadas (uma guerra contra o Oriente por poder, dinheiro e ocupação de territórios sob pretexto de ser "santa") e a Inquisição, que queimou milhares de pessoas, principalmente mulheres, inocentes durante dois séculos. Com o cristianismo se tornando religião "oficial" dos estados europeus como catolicismo, em 1517 surgiu Lutero e suas 95 teses, o que deu origem ao Protestantismo (gênese das igrejas evangélicas atuais) mas aí a coisa desandou também.
Neste caldo de fé, dissidências religiosas, cooptação das doutrinas pelo estado e sistema, chegamos ao Brasil, em 2024. Um país que ostenta sem o menor pudor uma "bancada evangélica" e onde pastores (sic) aparecem como alguns dos homens mais ricos do país. Na verdade, há anos, no Brasil uma parte dos pastores se assemelha mais aos vendilhões do templo expulsos com violência por Jesus Cristo do que ao próprio e seus discípulos. Claro que falamos aqui de seres abjetos como Edir Macedo, Silas Malafaia, Valdomiro Santiago, R.R. Soares e não dos pastores anônimos que cuidam com devoção de seus templos em periferias e comunidades pregando a palavra e cuidando de seu rebanho, como muitos o fazem. O problema é que os primeiros são quem ditam as pautas políticas e consequentemente parâmetros morais e ideológicos. Com base em seus interesses políticos-econômicos.
Nessa mistura de poder econômico (através de dízimo, doações e isenção de impostos), ascensão política e ocupação da mídia, aconteceram dois fenômenos, um político, outro teológico: o primeiro foi o vácuo para o surgimento de uma extrema-direita hipocritamente moralista, representada pelo bolsonarismo. O segundo, para poder justificar e respaldar o primeiro, a releitura torpe da doutrina de maneira a forjar um Jesus Cristo à imagem e semelhança de seus interesses, bem diferente do descrito na Bíblia. Tanto que na teologia bolsonarista-neopentecostal, qualquer ajuda ao próximo é associada ao comunismo (que, demonizado, deve ser combatido). Quando quem disse "divida o que tem com os pobres" não foi Karl Marx e sim Jesus.
Dessa forma o Jesus de Malafaia, Valdemiro e Macedo, assim como dos seus genéricos, é vingativo e violento, usaria armas de fogo (como afirmou uma vez o próprio Jair Bolsonaro) e praticaria misoginia e homofobia. Quando na verdade, nos evangelhos, Jesus sempre foi manso e tolerante para com os pecadores. O único momento em que Cristo é violento é justamente com os vendilhões do templo: "Não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio!”, disse Jesus, segundo João (2, 13-22).
Mas na teologia deturpada dos evangélicos aliados da extrema-direita, Jesus não expulsaria os vendilhões. Para eles, Jesus, em vez de ser tolerante com a adúltera, a apedrejaria, como pecadora "vagabunda" que é. Se fosse feias talvez não merecesse nem mesmo ser estuprada. Esse Jesus também daria porrada no filho gay, para aprender a ser homem. Na teologia bolsonarista-neopentecostal, não importa se eles têm pecado ou não, e sim que atirem a primeira pedra. De pedra em pedra, vão destruindo o verdadeiro cristianismo, a palavra de Jesus, a Constituição e de quebra a Democracia.
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