
Gutenberg Costa – Escritor, pesquisador e folclorista.
Agora, nesse período momesco, resolvi reler o meu livro de pesquisa sobre o carnaval natalense, entre 1875 e 1945. Pesquisa que me deu o maior trabalho e tempo em ler os antiquíssimos jornais no Instituto Histórico e Geográfico, que faço parte e nos arquivos dos jornais ‘A República’, entre outros. Tempo sem celular. Leitura com lupas e muita paciência. Transcrevendo tudo para cadernos escolares. Nada de recursos tecnológicos tão fáceis hoje em dia para os novos pesquisadores. Foram quase uma década de pelejas, para o livro ser publicado em 2016. Faltando o segundo e terceiro volume, esperando um patrocínio cultural para Natal ter a sua história completa, segundo noticias veiculadas na nossa imprensa e parte de minhas memórias, desde os papangus da minha infância.


Resolvi hoje neste texto, apenas destacar um pouco do lado humorístico e irreverência ao longo do tempo lido no citado livro e lembranças de minhas memórias da temática em questão. Uma boa e alegre viagem no tempo, como dizem os memorialistas, nesse tempo de pandemia e guerra. Como disse o nosso historiador e folclorista Câmara Cascudo, em sua obra sobre a história da Cidade do Natal: “Tudo isso o tempo diluiu. Mas a história ficou…”. Ficou apenas o que alguns se propuseram a pesquisar e registrar sobre o nosso passado, com coragem e teimosia pessoal, sem incentivos oficiais.

nesta segunda-feira (28), às 13h, na Tv Tropical (Rede Record)
Recentemente, fui entrevistado pela querida amiga jornalista Margot Ferreira, sobre o carnaval natalense do meu tempo, esta, me sapecou de surpresa a seguinte pergunta: “Gutenberg Costa, me diga em uma frase, o que define o carnaval?”. E eu imediatamente, lhe respondi o seguinte: ‘Carnaval, sem irreverência não existe!’ Lembrando o que me dizia o velho e saudoso amigo folião Castilho, da Redinha, nas mesas do bar Pé do Gavião: “Amigo Gutenberg, Carnaval muito organizado e sem irreverência, é um mero desfile militar.”. E o irreverente amigo irmão Castilho, que se vestia de anjo azul nos carnavais, somente com o intuito de abençoar as casas de amigos, agremiações e bares da Redinha, se foi recentemente. E as vezes o mesmo, se fantasiava de motoqueiro ou um jovem Mórmon, para quem sabe apenas ironizar com a juventude rebelde e suas crenças manipuladas. E Castilho, foi um dos últimos foliões, que encarnavam verdadeiramente o espírito alegre do passado. Esse carnaval, vai passar no céu, com sua alegria e amizade fraternal, invejável a muitos santos já canonizados.
Natal teve famosos foliões, antes de Castilho, que merecem ser lembrados. Infelizmente alguns do nosso apressado presente, preferem o esquecimento e a omissão para com eles, personagens reais do carnaval do passado. Nomes vivos, alegres e honrados! Têm até um dito popular judaico, que diz que: “Os únicos mortos de verdade, são os que foram esquecidos!”. A historiadora Eneida Moraes, primeira escritora do carnaval carioca, base de nossa influência direta em nossos costumes e agremiações, observa que no início do século XIX, os homens se fantasiavam de: “Arlequins, marinheiros, Pierrôs, velhinhos e diabinhos”. E as mulheres de: “odaliscas, borboletas, jardineiras e ciganas”. Todos bem comportados para os padrões familiares da época e dos bons costumes.

Dos preceitos da religião Católica e da censura policial vigente e vigilante. Até a nossa potiguar impressa, não era aliada das ditas transgressões. Nossos primeiros cronistas carnavalescos não aprovavam as anuais irreverencias e o mela-mela das ruas. Elogios mesmo, eles só faziam aos bailes elitizados com fantasias de luxo, que ocorriam no teatro Carlos Gomes (Alberto Maranhão) da Ribeira e o Natal Clube, da Cidade Alta. Parecem que os tais senhores cronistas, não andavam nas ruas e nada visto nos seus caminhos as festas fechadas, lhes causavam risos e graças.
No ano de 1891, um cronista dá notícia de um grande escândalo, quando anuncia a presença de um Clube de rua carnavalesco, composto só de homens fantasiados com vestidos femininos. Atento as pesquisas, constatei trata-se de um grupo das ‘Maxixeiras’. Também observei existir pouquíssimos registros de que os foliões, ‘Ferreira Itajubá’, ‘Deolindo Lima’, ‘Olympio Baptista’, ‘Eduardo Medeiros’, Francisco de Assis Botelho e ‘Alcides Cicco’, entre outros, se fantasiavam com ironias e animavam cada um a seu modo e condições, os nossos antigos carnavais. E o sério poeta Deolindo, por exemplo, nos carnavais, se fantasiava de ‘mulher’, com a vestimenta feita pela própria mulher, para participar ativamente do seu Cordão de rua nominado de ‘Maxixeiras’.
Depois tivemos o funcionário dos Correios de Natal, Raimundo Amaral, escandalizando as ruas pacatas e moralistas dos anos 40, do século XX, vestindo-se elegantemente de Carmem Miranda, para sair as ruas e bailes. Segundo me contou o saudoso memorialista e amigo Lenine Pinto: “O Raimundo, parecia a própria Carmem Miranda, em seu luxo e trejeitos!”. Existiam famílias inteiras que se dedicavam aos festejos momescos, como a família Bulhões, que era reconhecidamente de foliões alegres e irreverentes do bairro do Alecrim. Tinha gente que rasgava os próprios lençóis e toalhas de casa, só para vestir um grupo de meninos papangus, como a amiga foliã Marlene Teixeira, fazia no bairro do Alecrim, nos anos 60. A Marlene encantou-se, e eu aqui, fui um deles…

Temos que lembrar as grandes estripulias momescas feitas por cinco grandes foliões e boêmios: Albimar Marinho, José Alexandre Garcia, Ney Marinho, Zé Herôncio e Tota Herôncio – (pai e filho). Cada um a seu modo e seu tempo. Nos anos 80, surgiu o amigo folião carnavalesco Adiel de Lima, que pedindo emprestado um vestido farda escolar de uma aluna da respeitadíssima Escola Doméstica, sob segredo total, saiu as ruas do centro de Natal. E o saudoso Adiel, me contou em vida, que morreria e a ninguém diria quem foi a aluna do citado empréstimo. O mesmo ainda me disse, rindo muito, que toda a referida escola feminina fora questionada de tal façanha punível em expulsão para a aluna, mas nenhuma delas, teria assumido a tal transgressão carnavalesca. Restou uma das maiores ironias de todos os tempos do carnaval natalense, em segredo eterno!

Tivemos grandes nomes de criativos em suas brincadeiras de momo. Um exemplo era o de Zé Areia, que como Rei Momo, para causar espanto nos soldados americanos da segunda guerra mundial, se vestiu de mulher, com vestido e corpetes, recheados de quenga de cocos. O boêmio Zé Areia, que eu vi adolescente, segundo o mestre e amigo Veríssimo de Melo, seu biógrafo, este fora o maior boêmio e presepeiro de Natal. Foi de barbeiro pobre a Rei Momo, rico e alegre nos nossos carnavais.

Tivemos outro Rei Momo, festivo e irreverente, que foi o Severino Galvão, que saía de qualquer maneira, oficial ou de protesto, fantasiado de Rei, nas ruas e nos bailes dos clubes fechados, com uma dedetizadora de mão, tipo ‘Detefon’, cheia de perfume, para aspirar nos seus súditos queridos. O velho Severino, que eu conheci, foi o último dos Reis carnavalescos em Natal, que esbanjava sozinho, alegria, sátira, protesto, criatividade e humor. Depois, dele, ninguém mais…

Vou encerrar essa cantilena momesca, estendendo a bandeira branca de paz, como cantava divinamente, a genial Dalva de Oliveira. E que vivam, em nossas memórias, todos os heróis e heroínas do carnaval natalense, que afrontaram as mesmices e as tristezas, com seus gestos festivos, desde o tempo do nosso Entrudo…
Domingo de carnaval, morada São Saruê, Nísia Floresta/RN.
4 Comentários
Parabéns Gutemberg
Senti falta de uma menção ao Rei Momo, Paulo, o oficial, já que Severino Galvão era o dissidente, com ministério e tudo. Conheci os dois.
Esqueci o sobrenome do Rei Paulo Maux.
Que maravilha de texto!