Ameaçadores olhos azuis
A soma de boa lembrança e saudade, que gera minhas memórias afetivas, permite-me arriscar a afirmação de que o primeiro filme que assisti no saudoso Cine São José, nas Quintas, foi “Minha Vontade é a Lei”, um faroeste de 1959 baseado no romance “Warlock” lançado um ano antes.
A soma de boa lembrança e saudade, que gera minhas memórias afetivas, permite-me arriscar a afirmação de que o primeiro filme que assisti no saudoso Cine São José, nas Quintas, foi “Minha Vontade é a Lei”, um faroeste de 1959 baseado no romance “Warlock” lançado um ano antes. Meados de 1970, prestes a fazer 11 anos, foi uma emoção especial ver um filme do ano em que nasci, o que me fez interessar-se por outros quando estavam em cartaz.
Convenhamos que é uma bela estreia para um guri que dali poucos anos iria se apaixonar por cinema e TV. Aquele bang bang tinha simplesmente três monstros de Hollywood atuando juntos (eu saberia isso bem depois): Henry Fonda, Anthony Quinn e Richard Widmark. Na trama, a cidade de Warlock precisava de um xerife que botasse ordem, sem ter que fugir enxotado pelos bandidos ou ser assassinado. A situação iria alinhar os três grandes atores.
Widmark, o galego valente de olhos azuis, pertencia a um grupo de bandoleiros liderados por um rico fazendeiro, enquanto Fonda e Quinn eram dois habilidosos pistoleiros afeitos a aventuras, algumas nas mesas de baralho.
Os dois amigos aceitam defender a cidadezinha, enquanto o outro ficou contra a bandidagem do seu grupo e virou comissário da lei. Impossível não torcer pela união do trio e não sacolejar nas cadeiras gritando e assoviando pra tela.
Os anos foram passando e aquele estereótipo de bandoleiro impávido ou de mocinho carrancudo e destemido se multiplicou nas telas dos cinemas e na programação da TV, onde a figura de Richard Widmark emitia sua fulguração.
Nas toneladas e quilômetros de material midiático produzido ao longo das décadas em que ele atuou, sobrou muito espaço para destacar a dimensão do ator que ele foi, espaço muito mal preenchido por gente bem menor que ele.
Em que pese ter estreado na indústria cinematográfica com mais de 30 anos, num melodrama de 1947, é por mais consagrador ter atuado anteriormente no rádio e no teatro sob a direção de duas lendas: Orson Welles e Elia Kazan.
Alguns da sua época conseguiram brilhar mais que ele; mas nenhum teve força vocacional superior ou um talento tão particular para enriquecer personagens investidos de crueldade gélida, espírito vingativo e violência improvisada.
Aliás, na sua estreia, fez um gangster sem escrúpulos que provocou reações indignadas em espectadores mais sensíveis. Na cena mais marcante, o loirinho de olhos azuis e rosto anêmico empurrou uma idosa numa cadeira de rodas.
Fosse nos dias atuais, sua fala seria mais grave que o empurrão. Ele diz enquanto a senhora cai: “As mulheres não são boas se você quer se divertir”. Imaginem isso dito num misto de ameaça e de humor ácido oitenta anos atrás.
Nas tantas vezes que o vi e revi, principalmente na TV, era confortável saber que nascera no ano do meu pai, 1914. Era de Minnesota, onde também nasceram grandes talentos como Bob Dylan, Judy Garland e Jessica Lange.
Daqui a pouco tempo será data dos 110 anos de seu nascimento e se faltar homenagens no tamanho dele, é certo que em Sunrise, sua cidade natal, ele será lembrado como um filho especial que marcou o universo do cinema.
O menininho que aos 4 anos virou fã de Boris Karloff e quando jovem entrou no exército, se tornou estudante de Direito e finalmente ator, morreu aos 93 anos em 2008. Fez papel de tudo e nunca mais ninguém repetiu como ele os facínoras, os gangsters e os assassinos disfarçados por trás daqueles olhos azuis.