AMARCORD CABOCLO
Nilo Emerenciano – Arquiteto e escritor Há alguns dias passei por uma pequena cirurgia na orelha direita.
Nilo Emerenciano - Arquiteto e escritor
Há alguns dias passei por uma pequena cirurgia na orelha direita. A médica fez uma sutura tão perfeita que alguém comentou mais parecer um cerzido. A observação clicou uma pasta em meus arquivos de memória. Lá nas Rocas, mais precisamente no Areal, próximo onde foi a Galinha de Mãe, a fachada de uma casa pequena ostentava uma placa: cerzideira. O que seria isso? Que profissão é essa? Pois é. Era uma senhora que consertava roupas com pequenos furos, queimaduras de cigarro ou dilacerações. Com a paciência de Jó ela unia os fios e reconstituía, como se ourives fosse, o tecido danificado, salvando aquela peça de roupa.
Me pus a pensar em velhas profissões ou serviços extintos, ou quase, levados pelo progresso. Na rua Felipe Camarão, próximo da minha casa, havia um barraco de madeira junto a uma árvore frondosa. Ali dormia e trabalhava Cafifa, preto tão magro quanto mal humorado. Consertava os sapatos das pessoas do bairro. O pessoal fixou uma placa no tronco da árvore batizando aquele espaço de Praça Barra-limpa e ali se reunia para conversar. Os mais velhos jogavam gamão ou dominó ali nos dias de sábado. Uma vez por mês, religiosamente, Cafifa vestia um terno azul marinho limpo e descia para a Ribeira. Era sua noite. Voltava altas horas, trôpego, bêbado e brabo, e se enfurnava no barraco gritando impropérios. Ninguém se aproximava nessas ocasiões. Cafifa era um sapateiro autônomo, sem vínculo profissional como tantos nesse tempo que iriam envelhecer desprotegidos. O que terá sido de Cafifa?
Esses desprotegidos eram tantos... Havia garrafeiros. Passavam nas ruas, gritando “- Garrafeirôôô!! Litro, garrafa, meia-garrafa...”. Empurravam uma carroça e eram responsáveis pela reciclagem dos materiais de vidro ou latas de óleo pois nessa época os plásticos eram coisa mais rara.
Carroceiros ainda existem, poucos. Na nossa rua passava um chamado Jerônimo. A meninada assediava: - Jerônimo, cadê Aninha? E Jerônimo, claro, soltava um repertório de palavrões. E os caga-lonas? Pra quem não sabe eram aqueles caras que viajavam em cima da carroceria dos caminhões, sentados em cima das cargas. A gente gritava “-Caga-lona!” só para ouvir as respostas cabeludas.
Era comum na paisagem das ruas a presença de mulheres equilibrando na cabeça grandes trouxas. Eram as lavadeiras. Iam e vinham a pé, pegar as roupas nas casas da freguesia e devolviam, dias depois, lavadas, passadas e cheirosas.
Vendia-se de tudo nas portas: cuscuz, arroz-doce, beiju, grude, tapiocas enroladas em folhas de bananeira.
O verdureiro passava diariamente. Duas trempes unidas por um pau permitiam ele levasse as mercadorias nos ombros. Nas trempes três ou quatro cestos, do maior ao menor. Coentros, tomates, cebolas, couve e tudo mais. Não havia cartões de crédito e muito menos PIX. Era tudo no dinheiro ou fiado anotado em uma velha caderneta.
Às vezes, velhas ciganas passavam oferecendo seus serviços de adivinhar o passado e o futuro. As moças acorriam, pressurosas. As ciganas mais pareciam mendigas. Não tinham nada do charme das ciganas de TV. Inspiravam pena ou medo, mas eram espertas e ladinas. Andavam sempre aos pares. Minha mãe mandava a gente se afastar.
De vez em quando aparecia um dentista na nossa rua. Se instalava em uma das casas e extraia os dentes da garotada da vizinhança. De uma mala ele tirava um fórceps enorme e o que víamos lá dentro mais pareciam instrumentos de tortura. Nesses dias os meninos todos passavam a exibir o sorriso desfalcado de um dente ou dois. E ainda jogavam os dentes no telhado juntamente com um desejo.
O sanfoneiro Zé Menininho cortava nosso cabelo. Eu me escondia quando ele aparecia, apesar de ter aquela cara de boa gente. Mamãe ameaçava e eu era obrigado a sair do esconderijo, cabisbaixo.
Aos gritos do sorveteiro, no entanto a gente corria pra rua. Sorvetes de morango, baunilha, coco, cajá. Uma vez vi um desses sorveteiros preparando seu material e, eca!, passei um bom tempo mantendo uma distância prudente da guloseima. Vi pela primeira vez, no Recife, um vendedor anunciar picolé. Em Natal nós chamávamos polí. Algumas donas de casa vendiam para aumentar a renda doméstica. O sabor mais disputado era o de coco-queimado. Mas o primeiro picolé a gente nunca esquece. Aqui chegou com o nome de Big-milk, uma delícia. Um dia surgiu um trequinho chamado Kanapu. Era um saco plástico com um canudo e um pouco de refrigerante dentro. Depois mudou para Dadá. Foi o precursor do Din-din, ou Sacolé.
Bom mesmo era ir na vacaria de Luzinaldo, no fim da tarde. A meninada com canecos na mão já com açúcar e canela no fundo. O vaqueiro espremia o peito da vaca esguichando aquele leite quentinho e espumoso no caneco e a gente saia lambendo os beiços.
Na frente do colégio havia sempre uma profusão de vendedores. “Gelé” de coco, laranja, rolete de cana, sonho, cavaco chinês, cocadas, pirulitos que colavam no céu da boca, vendidos em uma tábua cheia de furinhos. Uma festa.
Meu tio trazia da feira sequilhos, alfenins, puxa-puxa. Trazia também uma iguaria chamada pecado-maneiro, coisa que há anos não tenho o prazer de comer. Era uma rodela de goma, fina como uma hóstia, sequinha e crocante, uma delícia acompanhada com café.
Em agosto era tempo de comprar o peru e começar a engorda para o Natal. Um homem passava com um cesto enorme na cabeça e as aves amontoadas lá dentro. O peru passava a ser protagonista em nossa casa. Era ótimo ver a minha tia enfiando goela abaixo o bolo de comida até chegar ao papo que ela apalpava, conferindo. Quando chegava o dia de executar o bicho a gente nem queria ver. O peru tinha se tornado nosso amigo apesar da cara de abestalhado.
Eita, os sabores, os pregões, as ruas da nossa infância! As alegrias inocentes dos prazeres satisfeitos. Os aromas, as cores, o gostinho na boca da nossa memória.
Um passeio ao passado. O incrível é que muitas dessas “profissões “, atividades ainda perduram nos dias de hoje, apesar de todo aparato tecnológico. Acredito que se deva ao fato do aumento de expectativa de vida e a necessidade de atender a esse público, não adeptos as inovações tecnológicas.
Um ótimo domingo pra todos que fazem o jornal ALERTA e por todos que curtem esse jornal.É verdade, alcancei tudo isso que foi apresentado sobre os velhos tempos que não voltam mais amei essa reportagem. Foi maravilhoso .
Bom dia!
Que viagem maravilhosa ao passado. Parece que foi ontem. Inesquecível.
Direto do túnel do tempo.
Abraços
Marly