A SOLIDÃO É FERA, A SOLIDÃO DEVORA
Cefas Carvalho- Jornalista e Escritor Cinco da manhã.
Cefas Carvalho- Jornalista e Escritor
Cinco da manhã. Acordo, me masturbo, levanto da cama, faço meus exercícios matinais – dez flexões e vinte polichinelos – escovo os dentes, urino, defeco e tomo banho. Penteio o cabelo e visto a calça marrom de sarja. Sempre nessa ordem, sempre assim. Ordem e disciplina são tudo.
No decorrer do dia, mantenho a disciplina; mais exercícios (há uma barra de ferro no vão entre a cozinha e a sala), depois ler um pouco – O Decamerão, naquele dia – e fazer contas. Operações matemáticas, sempre gostei de equações. Por fim, às dez horas, desço até a dispensa, pego as latas e na cozinha, faço o almoço, com lentidão e tranquilidade, como é para ser.
Almoço quase sempre entre onze horas e onze e quinze. Faço a digestão com mais um pouco de leitura, aí deito para uma sesta. Acordo sempre às catorze horas e retomo os rituais de disciplina: varrer e organizar a casa, lavar os lençóis, conferir a dispensa (felizmente ainda cheia). No final da tarde, converso comigo mesmo ao espelho, antes de fazer a barba. Faço caretas.
À noite é tudo sempre mais estranho, embora sem sobressaltos. Uma espécie de resumo de tudo que aconteceu durante o dia, mas à meia luz e com sombras. Por vezes, abro a janela e olho em volta, lá fora... mas, me canso rapidamente e volto para as tarefas; ler um pouco, tentar escrever, conferir lá embaixo o gerador de energia, separar as latas de carne em conserva, banheiro, urinar, aparar os pelos pubianos, fazer a barba, tomar banho. Jantar. Dormir.
Cinco da manhã. Acordo, me masturbo, levanto da cama, faço meus exercícios matinais... Às vezes vario, tento flexões com um braço só... Pulo balançando a cabeça como um atleta treinando... Enfim, banheiro e repetir os rituais de higiene. Ordem e disciplina são tudo. Ou, é o que me restou, pelo menos.
Porém, ao descer ao porão no começo da noite para pegar as latas de carne em conserva, uma surpresa dupla: atrás das latas, coberta por poeira e baratas mortas, duas garrafas de vinho. E um aparelho de tocar CDs, daqueles bem antigos, que pareciam um disco voador.
Levei tudo para cima. Atarefado, mantive minha rotina de sempre. Ler, escrever, limpar a janela, olhar uns minutos para fora, fazer mais exercícios, banho, jantar, dormir.
Nos dias seguintes repeti, claro, a rotina, sagrada, necessária. Até que em um dia em que por alguma razão realizei as tarefas mais cedo do que de costume, decidi olhar com atenção o aparelho. Limpei-o, abri-o. Continha um disco de CD dentro. Parecia estar em condições de funcionamento, apesar da poeira e tempo sem uso. Liguei-o na tomada e acionei o play. Um dedilhado de violão, um assobio, e, como por encanto, uma voz se fez ouvir na sala:
A solidão é fera, a solidão devora. É amiga das horas prima irmã do tempo, E faz nossos relógios caminharem lentos...
Havia tantos anos que eu não ouvia música que pareceu um alumbramento aquela vibração, a mistura de voz e instrumentos musicais. De repente me flagrei movendo braços e pernas, de maneira que estava dançando. Sim, dançando. Sem pensar mais no jantar que teria de fazer, repeti a música. Várias e várias vezes e lembrei-me das garrafas de vinho que havia descoberto junto com o aparelho. Abri uma delas, depositei o líquido no único copo disponível e senti aquele líquido quente, quase azedo, pela minha garganta. Repeti a música, coloquei mais vinho no copo. E levantei. Enlacei a mim mesmo com os braços, como se dançando com alguém e movimentei os pés pelo piso e então tudo ficou bem estranho, sensações de que tudo girava à minha volta, que a voz era sussurrada em meu ouvido:
A solidão dos astros A solidão da lua A solidão da noite A solidão da rua...
Cinco e meia da manhã. Acordo. Com a cabeça latejando e dificuldade em respirar. Tento me acalmar. Tento me masturbar, como faço toda manhã, e não consigo. Com certa dificuldade; levanto da cama. Mas, com a cabeça latejando o corpo cansado, decido não fazer exercícios. Tomo um banho demorado. Faço um café e percebo a lata de conserva que seria o jantar na noite anterior aberta pela metade com a chave pendurada; e as duas garrafas de vinho secas.
Faço menção de ligar o CD player, mas, desisto.
Abro a janela. Olho ao longe, mais demoradamente do que de costume. Por um segundo, penso ter visto alguém, também ao longe, mas, sei que foi uma ilusão, um ato falho da retina. Não há ninguém. Desde 2058, com a explosão nuclear e a chuva radioativa não há mais ninguém aqui, a não ser eu, poupado da morte por alguma razão estranha que não consigo conceber. Talvez existam outras pessoas no planeta em situação igual a minha. Não tenho como saber. Talvez aconteça uma segunda tempestade radioativa, como previram os cientistas, e dela eu não escape.
De qualquer maneira, a dor de cabeça começou a passar. E era hora de voltar para as tarefas. Cansado de devaneios, escondo o CD Player em um pano novamente atrás das latas, não sentia mais vontade de ouvir música. Retomei os exercícios, li – O Decamerão, claro – fiz o jantar e minhas necessidades.
Deitei então, cansado, para dormir. Talvez sonhar.
Maravilha de crônica… mais um, parabéns!