A pior das despedidas

junho 11, 2023

Bruna Torres -Jornalista e escritora Não estamos prontos para nos despedir de quem amamos, esse é um dos momentos mais difíceis na vida, o adeus.

Dona Severina Machado Torres ( avó da autora desta crônica, Bruna Torres) Foto: cedida

Bruna Torres -Jornalista e escritora

Não estamos prontos para nos despedir de quem amamos, esse é um dos momentos mais difíceis na vida, o adeus. Porém, em determinadas situações, algumas pessoas partem em vida e sem nenhum aviso prévio.

Na terceira, ou na melhor idade, como dizem, minha avó ficou muito doente em função de complicações da diabetes, e um simples machucado se transformou em uma amputação no dedão do pé, pode parecer insignificante para quem já amputou uma perna, um braço… Mas, para ela, perder uma parte de seu corpo, também foi como fragmentar sua alma da carne, aos poucos.

Isso mexeu muito com sua cabeça e em quase dois anos lutando contra idas e vindas em hospitais, eu vi a mulher que me criou, que me levava à igreja aos domingos, que todos os dias religiosamente ouvia a Rádio Nordeste Evangélica em seu pequeno rádio FM, se tornar um abismo dentro de si mesma.

Nossa programação, antes de a demência a levar para um lugar nefasto, era assistir aos programas no SBT aos sábados, ‘Fábrica de Casamentos’, ‘Esquadrão da Moda’, os casamentos eram seus eventos favoritos, com muita expectativa esperávamos as noivas, os temas do casamento, o tão esperado bolo e toda a infinidade de atribuições que um evento dessa magnitude pede.

Foto ilustrativa

Talvez, em seu interior, ela sonhasse em ter casado daquela forma, com uma festança, um vestido deslumbrante e um bolo tão grande quanto. Ela direcionava isso a mim, inventávamos histórias de como seria meu casamento e essa também era nossa forma de passatempo.

Lembro-me de um episódio em especial que me marcou, um casamento em que a noiva não adentrou à igreja acompanhada de uma figura masculina, ela tinha entrado sozinha, conduzindo a si mesma para o encontro de seu amor, que a esperava no altar.

A justificativa dela? A quebra do padrão patriarcal de um homem entregar uma mulher ao outro como se esta fosse sua posse. Jamais esqueci de como aquilo me marcou, achei diferente, fantástico, mandei mensagem para ela no Instagram, elogiei o casamento, a breve história de vida contada, etc.

Foto ilustrativa

Aquele não foi um dos casamentos favoritos de vovó, dona Severina Machado Torres, adorava vestidos brancos, cheios, aquela coisa bem tradicional…

Mesmo com a mente de uma mulher nascida em 1947, num interior da Paraíba, vovó não aspirava casamentos e tradicionalismo à mim, pelo contrário, sempre me incentivou a estudar, trabalhar, para que um dia eu jamais dependesse de homem algum.

Semi analfabeta, vovó sabia apenas escrever seu nome, ler algumas palavras e trechos da Bíblia, mas era uma mulher cheia de particularidades, não disfarçava amores, se ela gostava de alguém, era sincera. Adorava tomar café um pouco depois do almoço, tinha o cuscuz, a tapioca, o purê de batatas e a carne de panela mais gostosa do mundo, nunca vi igual.

Aquela mulher, que batalhou tanto pelo seu emprego, para criar as duas filhas e os netos, se transformou em um bebê quando a doença a atingiu. Dependia de todos para se alimentar, vestir, fazer suas necessidades mais básicas.

Dona Severina e as filhas Cristina e Acácia (Fotos cedida)
Sendo paparicada pelas netas

E de repente, as músicas no rádio ligado o dia inteiro se transformaram num silêncio torturante, as conversas antes de dormir, as fofoquinhas de família cessaram, restara apenas o silêncio entre nós e as tarefas do dia a dia, para mantê-la viva, pois sua alma já havia partido. Nada mais chamava sua atenção, nada mais despertava seu interesse, nada mais lhe dava prazer, nem mesmo os hinos gospel, a leitura da palavra, as músicas sobre fé, amor a Deus, apesar de que em seu coração, o amor ao Cristo ainda prevalecesse em meio à doença.

E deste modo, vi de forma gradativa aquela mulher se fechar em seu próprio casulo, em suas próprias questões, angústias e dores. Lembro-me de dormir chorando uma vez, por sentir falta das fofocas, das risadas, da música gospel antes de dormir e de todo o resto.

Foto ilustrativa

Naquela vez, eu percebi que nada mais voltaria a ser como antes e gostaria de uma última vez, eu pudesse ter assistido mais aos programas de bolo e casamentos, contaria mais fofocas, levaria ela à igreja mais vezes, aproveitaria o bolo de chocolate com granulado e refrigerante de guaraná, depois do culto.

São tantas coisas que permeiam o "e se", que é difícil dizer, mas o pior é adeus é quando alguém parte em vida, pelo Alzheimer, pelas tristezas internas; a vida segue seu curso e muitas vezes não permite despedidas, tampouco últimas vezes, por isso, precisamos aproveitar cada momento ao lado das pessoas que amamos, por mais singelo que ele pareça, assistir um programa na TV, comer pipoca e ver um filme, ou só se balançar numa rede depois do almoço e falar sobre a vida.

Esses momentos, assim como tantos outros, nunca mais voltam. Depois que ela faleceu, não houve mais almoços em família, aos domingos, em sua antiga casa, que se tornou alheia aos netos, aos filhos, como se pertencesse a outra era; não houve mais música gospel antes de dormir, nem a comidinha gostosa e caprichada que, mesmo sem tanta habilidade culinária, era preparada da melhor forma que ela sabia.

Foto Ilustrativa

Depois da doença, não houve tantas pausas, apenas um ciclo de despedida. No dia 5 de junho de 2021, ela nos deixou e, três dias depois, eu descobri que estava grávida (uma história para outra crônica, quem sabe?), desde então minha vida nunca mais foi a mesma, e graças a Deus, da melhor forma possível, mesmo com os percalços e responsabilidades da vida adulta.

Todos os dias eu tento viver ao máximo os momentos e aventuras, pois a vida é um ciclo de despedidas e nem sempre estamos prontos para dizer adeus, mas precisamos compreender que nada dura para sempre, só as lembranças que criamos ao longo dos anos, até que o último de nós, se torne poeira do universo.

Somos uma infindável coleção de memórias.

3 respostas para “A pior das despedidas”

  1. Linda história!lição de vida.
    Acontecimentos na vida de quase ou todos nós. Muita gente me critica, por pedir a Deus, pra partir como estou ainda com saúde aos quase 76 anos. É muito doloroso viver por viver. É minha opinião, melhor deixar a saudade a deixar alívio.

  2. Jaque disse:

    ai Bruna, esse mês completa 3 anos que a minha vó se foi e 2 anos que uma senhora que eu cuidava partiu. O luto é algo que parece não ter fim, estou vivendo uma situação que todo dia temo enfrentar mais uma perda, mais um luto. Nessas horas o agarrar em coisas do cotidiano que antes nem era tão importante, se torna a nossa força, a nossa energia. Sinto muito pelas perdas e agradeço pela sensibilidade da crônica. De certa forma eu me sinto abraçada e menos sozinha.

  3. vanda disse:

    Bruna, compartilhar essas emoções de perdas de pessoas que amamos é importante pois nos conforta por saber que é na solidariedade que nos fortalecemos. Quando minha mãe partiu senti um vazio insuportável. Foi difícil. Falar e compartilhar ajuda a superar. Linda crônica.