Gutenberg Costa – Escritor, pesquisador e folclorista.
Sou, confessadamente, autodidata em muitas áreas, sempre curioso, lendo e aprendendo todos os dias. Chateando cotidianamente os Houaiss e Câmara Cascudo. Estudei um pouco de Psicologia em meus cursos de Pedagogia e Direito. Comecei a ler as teorias da psicanálise do velho Freud e assuntos correlatos desde muito jovem. Sempre dou gargalhadas de dois traumas que os lembro, sem levar a sério. Meu cardiologista Rafael Negreiros, me diz que rir de quase tudo, é o santo remédio!
Fujo da Matemática, feito o diabo da cruz, devido à velha palmatória de seu Geraldo Costa, na minha infância. De nada valiam os parabéns das mestras nas minhas provas de geografia, português e história. Só depois de adulto, eu vi que eu não estava só. O saudoso intelectual Rubens Alves disse, em uma de suas belas crônicas, que até xingado e amaldiçoado foi na santa inquisição da matemática por um professor. Segundo as escolas, quem não soubessem bem a tal da matemática, iam mesmo ser vagabundos, como o Rubens e eu!
E outro ‘trauma’ meu, ficou reservado às pobres das batatas doces. Dona Estela as cozinhava, assava e até no leite as fazia. Um dia, tomei coragem e lhe disse: - ‘Mãe, quando eu crescer e ganhar meu dinheiro, batata doce não entrará na minha casa. Vou só comer pão com manteiga e queijos como os ricos em seus cafés!’. Contei o abuso das batatas ao amigo ‘seu’ Francisco da Quitanda, no centro de Nísia Floresta e lhe pedi para nunca mais me oferecer a dita cuja. Ele riu muito e, às vezes, me recepciona muito bem só que dizendo baixinho: “Chegou o homem que adora batatas!”. Levo quase tudo na brincadeira e nunca entrei em consultórios de meus amigos, discípulos do já referido, Sigmund Freud.
Conheci uma amiga, que me disse que não tomava sopa na hora da janta, pois lembrava do seu tempo de pobreza. Já um outro amigo, empresário, não pisava em seu bairro de infância. Não falava aos seus filhos onde nascera e que se criara como um menino muito pobre. Outro não falava o nome da sua primeira mulher, sem que antes desse três pancadas numa mesa de madeira por perto. Dizia ter um tremendo trauma do seu primeiro casamento e até cantarolava aquela velha canção: “Não fale desta mulher perto de mim!”. Ao que parece, meus dois ‘traumas, até parecem fichinhas diante do já que vi e ouvi na minha vida. E ao meu contrário, tem gente que leva tudo a sério e sempre está gastando dinheiro à toa com a dona ‘Medicina’.
Vou contar hoje uma história passada em minha antiga casa, sem aumentar um ponto sequer. Nada de nomes e datas. Só os milagres, sem os santos e santas. Pois bem, a dita mulher traumatizada com a pobreza do passado, era uma mãe de várias e lindas filhas. A velha fora criada no sertão seco sem ver chuva como bode e nem muito menos, carne, como camaleão. Sua casa, quase sem apetrechos, além de jarras, potes, redes, tamboretes e fogão de lenha ‘tirnando’ suas poucas panelas de barro.
Uma de suas filhas consegue ir para a Itália e logo casa-se com um empresário italiano muito abastado, mais velho do que ela. Em poucos anos, a dita filha compra uma mansão em Natal, empinada de muito luxo e tudo quanto é modernidade. Diziam que a TV era do tamanho da tela do meu antiquíssimo Cinema São Luiz, lá do Alecrim. Chuveiro elétrico, micro-ondas, tomadas com sensor, fogão imenso elétrico, mesas de vidro e decoração finíssima, com orientação de arquitetos, paisagistas e decoradores. Até sauna nos banheiros e churrasqueira no quintal, além de piscina.
Dizem que o diabo sempre prega peças em que se diz traumatizado, só para ficar rindo dos pobres desgraçados e desgraçadas. Um dia a velha que fora pobre, inventa de conhecer minha casa e quase desmaia de tanto sofrer. Chegou a chorar com suas tristes lembranças de sua antiga tapera, sem eira e sem beira. Entrou tremendo feito vara verde até a cozinha e nem café com tapioca quis provar, saiu que parecia ter visto a maior assombração de sua vida. Foi socorrida ainda com suco de maracujá e chá de camomila, santos remédios para trazer a calma, ensinados por minha saudosa mãe.
A dita senhora fazia muito tempo que não via o retrato de sua vida passada na pobreza. Espantou-se ao ver meus tamboretes de couros. Fez aquele ‘cruz credo’ ao avistar uma jarra, uma quartinha e meu filtro de barro. Fechou os olhos para não ver a velha máquina de costurar e nem um ferro de brasas, do tempo de minhas avós. Saiu triste e resmungando feito bode quando é obrigado a subir na marra em caminhão. E eu, felizmente, não estava em casa para ouvir seus impropérios e falatórios: “Ah, se eu adivinhasse que ia ver o que vi, eu não teria saído de minha casa. Eu pensei que Gutenberg, por ser escritor famoso, fosse pelo menos rico. Eu saí tão contente para ver a casa do menino de dona Estela e só encontrei cacarecos, bugigangas e tudo que é catrevagens espalhadas pelas paredes, meu Santo Padinho Ciço do Juazeiro. Aqui não volto nunca mais!”.
Segundo me diziam os mais velhos lá de Pendências, o mundo dá muitas voltas. Ouvi também muitos ditos na feira do Alecrim que me servem como filosofias de vida até hoje: “Nunca cuspa no prato que você comeu!” e “Nunca diga dessa água não beberei”. E ainda tem aquela ameaçadora: “Falou, a língua pagou!”. Dizem que o diabo, aquele que paga sempre o pato, fica na espreita só para gargalhar dos orgulhosos e prepotentes. Os luxos e as modernidades da senhora pobre do sertão demoraram pouco mais de um ano. O casório de sua filha na Itália não prosperou, como o esperado. A filha volta com uma mão na frente e outra atrás. Como dizem, foi com a mala e voltou com uma trouxa. A mansão é urgentemente vendida para pagar as contas atrasadas com o luxo todo comprado a fiado. A velha orgulhosa e traumatizada com a pobreza vivenciada em seu passado calmo e feliz, volta para uma casa humilde alugada, pois vendera a tapera antiga.
Dizem as faladeiras da vida alheia que sua filha nunca casara, vivia mesmo era de prostituição em terras estrangeiras. Papai, que não livrava o couro nem dos sete filhos, dizia que riqueza muito ligeira, sem herança ou uma loteria, ficasse com orelha em pé. Seu Geraldo, também me alertava que – “Pobre é quem mora em mansão de aluguel e vive devendo os cabelos da cabeça. Rico e feliz, é aquele que mora em sua tapera própria, sem comprar fiado em bodegueiro e come três vezes ao dia”.
A cada dia me encontro dando boas risadas com as antigas filosofias de ‘seu’ Geraldo Costa e da ‘dona’ Estela Medeiros. Meus patos e galinhas são testemunhas. Peço segredo aos meus poucos leitores e leitoras, mas percebo que alguns visitantes ditos ricos, quando aqui chegam, saem ligeiro feito cobra em areia quente. Será o danado do ‘trauma’ da antiga pobreza? E você, ainda vai ficar com traumas depois dessas histórias ou vai dar risadas nas feiras e mercados como eu? E como diz o chato do apresentador Datena: ‘seus traumas e suas besteiras, eu vivo muito ocupado na vida, vão se catar!’...
Morada São Saruê, Nísia Floresta/RN.
É muito bom ler duas crônicas nas manhãs de domingo. Faz o dia mais suave e alegre. Encanta-me sua sensibilidade para olhar e escrever sobre as belezas da simplicidade da vida. Parabéns!
Sempre uma ótima crônica 👏🏼👏🏼👏🏼.